sábado, 31 de janeiro de 2009
The Witches of Eastwick - George Miller
Bonnie and Clyde - Arthur Penn
Não sei como esse filme é um dos prediletos da minha infância. Não sei onde eu via ou quem me deixava assistir. A memória que eu tenho, um pouco nebulosa e imprecisa, não é errada. A cena final das metralhadoras não me deixa mentir. Tenho ainda uma outra lembrança da história de Bonnie & Clyde de um desenho, acho que uma versão de Esqueceram de Mim que passava em algum lugar.
O mais nostálgico é a trilha sonora totalmente hillbilly. Revendo o filme, não pude escapar da sensação de imaginar Bud Spencer aparecendo a qualquer momento e dando estrepitosos murros em alguém. Mas em termos de figuras histórias dando as caras, nada supera Gene Hackman. O filme é de 1967 e ele já estava com aquela mesma cara. Já era careca. Já se parecia com alguém não merecedor de confiança. Eu não entendo como ele entrou para a carreira in the first place. Não tem um filme dele em que ele não apareça com aquela mesma cara. Senhores e senhoras deste suposto júri, isso não faz sentido.
Ele conta sempre uma mesma história, sobre um filho que colocava um pouquinho de álcool no leite da mãe para atender a ordens médicas. Sem saber de nada, a mãe bebe o leite e começa a gostar. Faz isso por uma semana, a cada dia bebendo um pouco mais do que no dia anterior. Vem, então, uma punch line chocantemente sem graça. Ele ri como uma criança. Eu adorei quando ele foi contar essa mesma história para um casal que eles tinham acabado de conhecer. Eles, quero dizer, os integrantes da Barrow Gang. E o varão desse casal é ninguém menos que Gene Wilder. Enquanto Hackman vai entretendo o abobalhado Wilder e sua noiva -- ambos, incidentalmente, capturados --, todo mundo que está no carro faz uma cara de obsessivo tédio. Seria uma foto perfeita, para quem gosta de registrar esse tipo de coisa.
Igualmente memorável é o recrutamento de C.W. Moss para a gangue, ele que até então estava tentando ganhar a vida honestamente, trabalhando num posto de gasolina, depois de uma temporada passada num reformatório. Bonnie lhe pergunta se ele saberia dizer que tipo de carro era aquele que ela estava dirigindo. Ele responde com todas as especificações possíveis. Ela diz que ele está errado. Ela diz que a primeira especificação a ser considerada é a de que o carro é roubado. Ali foi o primeiro olhar de C.W. sendo desviado da sua interlocutora, o seu primeiro pensamento de que ele estava em apuros. Quando ela se apresenta como ladra de bancos, o paninho que estava nas mãos de C.W é atirado ao chão, como dizendo "I'll be damned". Socos de incredulidade na pilastra de madeira. A expressão de quem está prestes a sucumbir a uma tentação, a expressão de quem quer mostrar que tem coragem suficiente para sucumbir a uma tentação: taí o que diferencia o homem dos animais.
sexta-feira, 30 de janeiro de 2009
Mudando um pouco
segunda-feira, 26 de janeiro de 2009
Lohengrin - Vorspiel - Furtwangler
Planet Terror - Robert Rodriguez
Eu me lembro de ter lido em algum lugar que quando o Nirvana foi gravar o clipe de In Bloom, e querendo que a fotografia tivesse um efeito envelhecido, em vez de acrescentar artificialmente esse efeito por computador, alguém teve a idéia de pegar uma câmera antiga e que já não estivesse funcionando perfeitamente bem. Acho que essa solução é bem melhor do que o resultado obtido neste filme. Que tirando essa pequena ressalva é excelente em todos os outros aspectos. Meu amigo me explicou que o lançamento foi em conjunto com o Death Proof, lá nos E.U.A os dois filmes sendo exibidos de uma vez só nos cinemas. Uma outra amiga já tinha me dito dessa simbiose, embora à época eu não entendesse bem a informação. Bons amigos, eu tenho. Comemoro, ainda, o fato de não ter precisado bloquear a minha visão em nenhuma cena especialmente repugnante. A maior parte do tempo, por exemplo, eu estava rindo, é claro. Como na hora em que o ajudante do hospital reclama das malditas noites de quarta-feira, as suas vísceras sendo consumidas no ato por canibais mortos-vivos. E basicamente tudo relacionado ao molho de churrasco em breve vencedor de prêmios é engraçado. Como engraçada é a morte repentina do personagem do Naveen Andrews. Ou a intervenção do Tarantino no elevador. Eu não teria talento para escrever qualquer coisa parecida com isso, mas gosto de pensar que eu reconheceria a qualidade do material assim que o visse, ainda que só por escrito. Estou um pouco sem tempo para continuar escrevendo. Fica a ostensiva recomendação.
domingo, 25 de janeiro de 2009
Shadow of a doubt - Alfred Hitchcock
Viridiana - Luis Buñuel
Mean Streets - Martin Scorsese
sexta-feira, 23 de janeiro de 2009
Lost - Because you left / The Lie
You lost me. Não assisti ao episódio zero da quinta temporada para me lembrar da pletora de detalhes deixados em aberto no fim da quarta temporada. E exigir que, meses depois, eu me lembre de alguma coisa, por pura força cerebral, nem preciso dizer que isso é tão inútil quanto um corretor de imóveis dentro de uma caixa de sapatos. Nesse ponto, felizmente, eu não estou sozinho. J.J Abrams himself parece não se lembrar direito de muita coisa.
Mas continuarei assistindo. E não fico encabulado de dizer que agora a coisa prossegue muito mais por inércia do que por entusiasmo. Sim, meus amigos, eu perdi o entusiasmo. Antes eu o tinha, agora não o tenho mais. Só por algum motivo, que para ser franco eu ainda não sei bem qual é, eu ainda não consegui juntar forças para simplesmente desistir. E olha que eu venho sustentando há muito tempo que contribuem para humanidade, tanto quanto aqueles que insistem nas boas ideias, os que prontamente desistem das parvoíces ordinárias -- aliás, gosto de pensar na minha existência como uma sucessão desse tipo de contribuição para a raça humana. Bom, e voltando ao assunto, se talvez seja verdade que continuar assistindo a Lost não chega a ser uma parvoíce ordinária, boa ideia, isso é que não é. Até agora, parece, foram 85 episódios. Pensar que eu gastei umas 85 horas da minha vida assistindo a essa coisa só não chega a me deprimir pelas alternativas que estavam ao meu alcance. Porque, em todo caso, é muito tempo dedicado a algo que já perdeu os últimos vestígios de significado, de coerência e de lucidez.
Esses dois episódios novos terminaram mais ou menos assim. Os que tinham saído da ilha estão quase chegando a um consenso de que é preciso voltar. Ninguém menos que o próprio Ben está cuidando da logística dessa operação. Jack, por natural, é o mais desesperado. John Locke, que aparecera cadáver no final da quarta temporada (disso eu me lembro porque quando se noticiou que a pessoa morta atendia por Jeremy Bentham, qualquer um poderia descobrir que era uma alusão ao Locke), é visto, em flashbacks, assomando pela floresta e dando facadas providenciais nos inimigos. Hurley escapa do hospício com a ajuda de Sayid. Pouca ação acontece no front da Kate e da Sun.
Enquanto isso, na ilha, Daniel consegue arregimentar um pequeno grupo de seguidores, ao oferecer explicações sumamente vagas ao que está acontecendo com a ilha -- isto é, aos clarões ruidosos seguidos do instantâneo desaparecimento/deslocamento de coisas da frente das pessoas. Quem mais o contesta, chegando a esmurrar, é o Sawyer.
Aproveito para fazer mais uma observação desnecessária. Acho que o excedente habitacional da ilha, simbolizado por um tal de Neil que aparece não sei de onde, será continuamente oferecido em holocausto para que a história ande. Se é já difícil manter em ordem os mais ou menos 15 personagens que participam realmente da trama, fico imaginando como deve ser complicado, para os escritores, situar (meio que escondendo, na verdade), uma sessenta pessoas dentro de uma única ilha. Uma forma que eles encontraram de liquidar algumas vidas foi atravessando flechas incandescentes por cima das árvores e fazendo com que elas penetrassem o organismo das pessoas mais distraídas. E fizeram questão de mostrar pessoas sendo atingidas e sendo deixadas ao Deus dará. Parcimoniosa muito além de qualquer limite, a Juliet ficou tentando jogar terra em cima de um incinerado. Precisou vir o Sawyer e arrancá-la do estupor.
quarta-feira, 21 de janeiro de 2009
Refeição perpétua
terça-feira, 20 de janeiro de 2009
Slapstick - Kurt Vonnegut
This day will live in history as the day the first six-fingered, multi-nippled, neanderthaloid monster, with massive brow-ridges, sloping forehead, and steamshovel jaw, becomes President of the United States. He is two meters tall. His name is Dr. Wilbur Daffodil-11 Swain. His main program consists in creating artificial extended families throughout America, as to abolish loneliness.
***
Kurt Vonnegut himself tells us that this is the closest he will ever come to writing an autobiography. With that and the bizarre character of Dr. Wilbur in mind, one can only wonder about what sort of a nutcase he really was. It is very endearing, however, to read about Eliza Mellon Swain -- Dr. Wilbur's dizygotic twin -- knowing Kurt's feelings towards his own deceased sister. "For my part, though: It would have been catastrophic if I had forgotten my sister at once. I have never told her so, but she was the person I had always written for. She was the secret of whatever artistic unity I had ever achieved. She was the secret of my technique. Any creation which has any wholeness and harmoniousness, I suspect, was made by an artist or inventor with an audience of one in mind. Yes, and she was nice enough, or Nature was nice enough, to allow me to feel her presence for a number of years after she died -- to let me go on writing for her."
Besides his sister, Vonnegut dedicated this book to the memory of Arthur Stanely Jefferson and Norvell Hardy, two artists he considered to be angels of his time. Slapstick it is, like a warning label, like he is saying: hey, you oughta know that in this story people will be crashing one another nonsensically. And drooling. And babbling.
And you have to laugh. This is a picture of a button part of the country went on wearing as opposed to the Lonesome No More! campaign button. For there were those who didn't want to take part on the program of artificial extended families -- that, basically, was the adoption of randomly selected new middle names, by the use of which everybody should become a member of a gigantic family. Of course some snob individuals that praised too much their own blood heritage felt disinclined to enroll. But this program would actually not only abolish loneliness, but would also solve another annoying problem: beggars. Like this:
"And consider how much better off you will be, if the reforms go into effect, if a beggar comes up to you and asks for money", I went on. "I don't understand", said the man.
"Why", I said, "you say to that beggar, 'What's your middle name?' And he will say 'Oyster-19' or 'Chickadee-1,' or 'Hollyhock-13', or some such thing.
"And you can say to him, 'Buster -- I happen to be a Uranium-3. You have one hundred and ninety thousand cousins and ten thousand brothers and sisters. You're not exactly alone in this world. I have relatives of my own to look after. So why don't you take a flying fuck at a rolling doughnut? Why don't you take a flying fuck at the moooooooooooon?'"
Make Mine Mink - Robert Asher
The Rainmaker - Francis Ford Coppola
segunda-feira, 19 de janeiro de 2009
Happiness - Todd Solondz
Europa - Lars von Trier
domingo, 18 de janeiro de 2009
Welcome to Collinwood - Antony Russo e Joe Russo
sábado, 17 de janeiro de 2009
Who's that knocking at my door - Martin Scorsese
sexta-feira, 16 de janeiro de 2009
Eichmann - Robert Young
segunda-feira, 12 de janeiro de 2009
Jack and Jill versus The World - Vanessa Parise
terça-feira, 6 de janeiro de 2009
Hocus Pocus - Kurt Vonnegut
Uma equação para comemorar quase o centésimo post deste transitório blog:
1926 - 2001 = -75
-75 + 1889 = 1814
1814 + 12 = 1826
1826 : 2 = 913
913 - 900 = 13
13 + 69 = 82
Só quando eu já estava terminando de ler é que a última folha se desatou do resto do corpo do livro, muito mais por culpa minha do que por defeito do produto. Aliás, comprei esse livro na Estante Virtual, na mão de um livreiro bastante solícito. Tão dedicado, eu pensei quando eu fui retirar a minha reserva e quando acabei conversando um pouco com ele, que se por acaso ele souber brincar de estátua, ele pode facilmente ganhar a vida num museu de cera em que o curador queira expor a réplica exata do que era o Woody Allen, por volta de 1991.
Eu tentarei escrever um pouco sobre a história para que assim eu tenha a chance de ir pensando com calma no que pode ser o seu significado. Muito bem. A narrativa é em primeira pessoa. Um veterano da guerra do Vietnã voltando aos Estados Unidos não para se embriagar avidamente e acrescentar mais um débito na conta da Seguridade Social, mas para levar a vida como professor no interior. Eu já não me lembro exatamente de como isso acontece. Foi a convite de um major, ou de algum militar superior, se eu não me engano. Acho que foi a mesma pessoa que, muitos anos antes, ao esbarrar com o Eugene -- o nome do personagem principal -- saindo de uma feira de ciências escolar na qual ele e seu pai haviam tentado perpetrar uma fraude acadêmica, o chamou para se alistar na escola de West Point.
Como usualmente acontece nos livros dele, numa trama em princípio simples aos poucos vão se apresentando desdobramentos imprevisíveis, vão sendo feitas alusões históricas e artísticas desconexas, vão se repetindo idéias fixas obsessivas, tudo isso fora de uma cronologia linear. O ponto máximo de regresso, eu acho, é ao final do século XIX, época da fundação da universidade da qual ele se tornaria professor. De alguma forma essa universidade se especializa em conceder títulos meramente simbólicos a pessoas com patologias diagnosticadas no setor da aprendizagem. Já o futuro é realmente futurista: em 2001 (o livro é de 1990) os EUA se tornam uma nação cujo controle é dispersado entre empresas estrangeiras e milionários árabes. A administração do principal presídio do livro, por exemplo, é feita por uma empresa japonesa.
A todo o tempo o mundo corporativo é comparado a situações de guerra. O chefe da missão japonesa que chega para tomar conta do presídio, por exemplo, é um sobrevivente do ataque nuclear a Hiroshima. Isso serve de pretexto para muitas divagações, a principal delas sendo uma espécie de absolvição moral implícita que é dada ao personagem, talvez o único que não mostra uma natureza torpe quando eclode um grande motim na prisão.
As páginas vão sendo lidas. Algumas coisas vão acontecendo enquanto outras coisas não vão acontecendo. Por exemplo: Eugene mente como pode para conquistar uma mulher num bar das Filipinas. Muito tempo depois, aparece um filho batendo à porta do seu gabinete. Depois de receber uma carta escrita em segredo por sua falecida mãe, o garoto passa a admirar este grande herói tristonho que deve ter sido o seu pai. Alguém a quem tenham acontecido tantas tragédias, afinal de contas, devia ser alguém de caráter. Na única noite que passaram juntos, em todo caso, Eugene inventou algumas mentiras que aceleraram a sensibilidade da mulher quanto à delicada questão de ir para a cama com ele. Mentiras que, mais tarde, moribunda, ela repassaria ao filho, escrevendo uma carta que só poderia ser aberta muito tempo depois. Estamos, agora, no momento em que o filho já leu a carta e finalmente encontrou o pai que ele nunca havia conhecido. Demonstrando toda a sua consternação com o passado:
"You have certainly had some bad luck", he said. "Your father [que nunca botou os pés para fora dos EUA] comes home blind from the war. Your childhood sweetheart [criatura fictícia que todo garoto tem a fantasia de existir, afinal] is hit by a car right before senior prom.
Your brother [que não nasceu nessa vida] dies of spinal meningitis right after he is invited [o irmão simplesmente não existe, okay?, é tudo uma mentira inventada pelo Eugene] to try out
for the New York Yankees."
domingo, 4 de janeiro de 2009
Russkiy kovcheg - Aleksandr Sukorov
Oliver Twist - 1948 - David Lean
Colour me Kubrick - Brian Cook
Wild in the Country - Philip Dunne
Nova série do Ricky Gervais Show
sexta-feira, 2 de janeiro de 2009
O Processo Maurizius - Jakob Wassermann
O "aqui e ali" que eu falei, no entanto, está longe de não satisfazer o interesse acentuado que eu tenho por tudo que se relaciona à história e à visão de mundo desse povo. O assunto é tratado com alguma profundidade nos praticamente monólogos de Warschauer-Waremme, um pouco perturbadores. Que, para melhorar a minha técnica de digitação, e como um brinde de início de ano, eu pacientemente transcreverei a seguir. O que me chamou a atenção nessa passagem, entre muitas outras coisas, foi a semelhança com o que eu me lembro mais ou menos vagamente de ter sido falado por aquele cara em The Believer -- filme a que assisti já faz muito tempo, mas sobre o qual andei conversando há algumas semanas. Pode até ser que nele se faça uma menção direta ao livro ou autor. Realmente eu não me lembraria agora. Transcrevo uma passagem que até vai revelar um pouquinho um detalhe da história. Não acho, porém, que estragará qualquer surpresa que alguém possa sentir a vontade de ter. Muito possivelmente, vai é incentivar a leitura do livro inteiro.
Estamos na Alemanha, no final da década de 20. A propósito, eu não gostaria de panfletar a respeito da guerra Israel-Palestina ou sobre o Terceiro Reich. Reconhecer Wassermann como o Dostoiésvski do século XX, afinal, significa reconhecer, acima de todo o resto, como ele sabia utilizar a psicologia para a caracterização dos seus personagens. É essa sua qualidade espetacular que eu gostaria de apresentar a quem eventualmente não a conhece. No mais, transcrevo apenas uma breve digressão que poderia ter sido omitida sem maiores prejuízos para o tema central do livro.
"Ah! sim, é verdade", exclamou Etzel, como se, durante todo aquele tempo, não tivesse mais pensado nisso. Sentou-se de lado próximo de Warschauer, para ouvir melhor e também, como estava escuro, para ver melhor. " O nome não tem grande importância", começou Warschauer, "não é mais do que uma chave, uma chave que abre, é verdade, portas bastante especiais. Você alguma vez conviveu com judeus, Mohl?" "Certamente! Vivemos no meio deles." "Você tem companheiros judeus?" "Sim." "Você se dava bem com eles?" "Muito bem." "Então, você não tem contra eles nenhuma hostilidade sistemática?" Etzel sacudiu a cabeça. Conhecia essa hostilidade, mas jamais a compartilhara. "Seus pais nunca advertiram você, proibindo-o de frenqüentá-los?" "N..ão." "Você está hesitando. Sim, não é verdade?" "Às vezes. Eu não ligava muito. Quando eram rapazes corretos, não dava importância." "Bem, é isso que eu queria saber." Conservou alguns instantes de silêncio, fazendo com a ponta da bengala buracos na areia. "Você pode imaginar que alguém procure enganar-se a si próprio sobre o seu nascimento? É uma coisa muito complexa. Não querer ser o que se é, renegar o tronco de onde se saiu, isso é o mesmo que trazer a própria pele como uma roupa emprestada. Meus pais eram judeus; pertenciam à segunda geração que gozou de direitos civis. Meu pai não tinha ainda compreendido que esse estado de aparente igualdade não era no fundo senão uma questão de tolerância. Pessoas como meu pai, aliás um excelente homem, não tinham, sob o ponto de vista religioso e social, ligações em parte alguma. Haviam perdido suas antigas crenças e recusavam-se, por boas ou más razões, a adotar novas, quero dizer: a fé cristã. Um judeu quer ser judeu. Que é que significa isso, um judeu? Ninguém pode oferecer a esse respeito explicação satisfatória. Meu pai se orgulhava da emancipação, creia você: uma invenção que tira ao oprimido qualquer pretexto de se queixar. A sociedade o repele, o Estado o repele; o gueto material se transforma num gueto moral e intelectual. Ele se enfatua e fala da sua emancipação. Você alguma vez já refletiu, meu pequeno Mohl, ou antes, você por acaso encontrou alguém que tenha tido motivo para refletir sobre certas... digamos, dissonâncias? Não? Você tinha mais que fazer, compreendo; mas talvez, de qualquer modo, você tenha ouvido falar do que se passa atualmente neste país. Não faço alusão ao desejo que têm de retomar esses miseráveis direitos civis que nos deram como se jogassem um osso a um cão. Por que não o fazem? Isso seria pelo menos agir honestamente, valeria mais que... permita-me um exemplo, que quebrar os monumentos funerários dos cemitérios israelitas. Você não acha? Que diz você, meu querido Mohl? Quebrar as campas! Hein? Profanar os cemitérios. Eis o que é novo na história, não? Dernier cri. Considero, depois disso, os envenenamentos das nascentes e o assassínios rituais como atos certamente criminosos e insensatos; mas, se os julgarmos de um ponto de vista mais elevado, eles se desculpavam pela paixão e pelo erro. Que acha você? Você fica calado, meu pequeno Mohl, e respeito seu silêncio. Essa profanação de túmulos é simbólica; infernal, única na história. Você já reparou alguma vez as últimas fagulhas que se extinguem sobre uma folha de papel queimado antes de ele ficar completamente negro? O mesmo acontece aqui. As última fagulhas da dignidade, de respeito próprio, de escrúpulo, de humanidade e de outras belas coisas com que nos enchem a cabeça, extinguem-se e tudo se torna negro. Mas estou me perdendo. É verdade que estabeleci, por princípio, que se afastar de um assunto é esgotá-lo. Não me deterei mais em recordações de família. Paciência, voltemos ao assunto. Contudo, ainda um axioma, meu querido Mohl, um axioma que vale para todos: em cada existência, chega um momento em que se pode escolher entre duas tendências diametralmente opostas, um momento em que Shakespeare poderia muito bem ter-se tornado um salteador genial como Robin Hood em vez de um autor dramático, ou Lenine, o chefe da polícia secreta do tzar, em vez de destruidor do regime. Eu teria podido, sob um impulso que, por insondáveis razões, não se produziu, ser chefe dos judeus, um Lutero do judaísmo. Enquanto que... hein! sim, é justamente disso que falo. Nossos atos são funções de uma dualidade profunda, inata em nós como a distinção instintiva que fazemos entre a direita e a esquerda. Não admita nunca, Mohl, que um homem em dadas circunstâncias não tenha podido agir de modo diverso do que fez: é falso. A questão é saber até onde seria preciso voltar para encontrar o momento em que seu livre-arbítrio permanecia intacto. Se você quiser, posso citar experiências pessoais... Não lhe aborreço? Sinceramente? Bem. O que na minha infância já me fazia sofrer horrivelmente era a covardia moral dos meus correligionários. Aceitavam suas existências de párias e consolavam-se com o sentimento místico e requintado de ser um povo eleito. Ou então, representavam o papel de senhores absolutos no mísero lugar onde haviam permitido que se ajuntassem ou, melhor, macaqueavam as maneiras dos todo-poderosos, seus senhores. Eu odiava a todos, quaisquer que eles fossem. Odiava sua língua, sua maneira de pensar, seu mercantilismo, sua melancolia atávica, sua presunção, sua mania de se pôr em ridículo. À noite, mordia meu travesseiro com raiva à recordação de um insulto, de uma humilhação, que a vítima tivesse sido eu, meu pai ou um outro judeu qualquer. Na escola, tremia de vergonha e todo o meu ser se revoltava quando pronunciavam a palavra judeu, mesmo de passagem, simplesmente para assinalar um fato. Você compreende isso? Na maneira de dizê-lo, já se percebiam todos os preconceitos, o ódio inveterado ao qual o decorrer dos séculos nada conseguiu tirar do seu fel e do seu rancor. Eu sabia o que pensar (bateu energicamente no chão com a ponta da bengala). Desde a idade de nove anos, sabia o que pensar; aos quinze, já tinha estudado a questão profundamente e era capaz de sustentar qualquer discussão. Mas não é com discussões que se mudam os fatos, mesmo os mais condenáveis, pelo menos no nosso mundo. E, entre todos os fatos, havia um que era absolutamente intolerável: o pensamento de que seria excluído de um setor qualquer da minha vida e da atividade humana. Então, eu, com a minha capacidade, a minha inteligência, o entusiasmo que sentia, não poderia jamais, quaisquer que fossem as circunstâncias, digamos, ocupar uma pasta ministerial? Ou me tornar o presidente de uma academia científica? E isso era, meu caro, possuir altos desígnios (teve um riso sardônico); eram pretensões loucas, minha ambição, não podendo nem mesmo ambicionar uma cadeira na Faculdade. Quaisquer que fossem as circunstâncias, jamais poderia conseguir a situação à qual um espírito mediano pode naturalmente aspirar, dado que não seja marcado pelo estigma de Caim. Esse pensamento me punha fora de mim. Podia-me dedicar a estudos, ensinar como entendesse, produzir trabalhos, ninguém me impediria; enfim, não me recusariam sua aprovação, até mesmo sua admiração, se os meus trabalhos o merecessem, mas... no fundo da alma, não teriam confiança em mim, rejeitar-me-iam, a mim e à minha obra, não me concederiam senão a contragosto as honras das quais são tão pródigos entre si. (Tirou o chapéu, mas logo se cobriu). Tudo isso eram raciocínios. O que é impossível contar é o essencial, a consciência de que me negavam tudo aquilo. E o que me negavam? Simplesmente, o direito de ter meu lugar ao lado dos outros, o direito de existir. Porque a existência não era possível para mim, pelo menos então, sem a posse total do mundo, o mundo em toda a sua plenitude, sem nada tirar ou limitar, e a vida intelectual e todo o império que ilumina. Assim cai por si mesmo a objeção que, sem dúvida, lhe veio ao espírito; que um só desses argumentos bastaria para me tornar solidário com meus correligionários e para encontrar nova força na necessidade de usar essas resistências. Já lhe disse, não gostava deles e, não gostando, sentia-me liberto de toda e qualquer solidariedade. Eles não podiam suprir tudo quanto me faltava. Deixando-os, eu não era um renegado; obedecia a uma necessidade interior. Dizer que não gostava deles, é dizer apenas a metade da verdade; a verdade integral é que o meu coração estava do lado dos outros. O fato não é raro; aquele que é repelido dá a sua alma aos que o rejeitam. É a característica do judeu: faz consistir sua terra prometida naquilo que lhe recusam; seu bem mais precioso, naquilo que não possui. É sempre a história do Paraíso perdido. Isso também é muito judaico: é a história do pecado original. Eu odiava de um lado e amava do outro. Amava a língua deles... a língua! a língua que era tão minha como meus olhos; amava a história deles, seus heróis, seus cantos, suas províncias, suas cidades. Amava-os com um amor mais profundo que o deles o compreendia-os melhor que eles próprios. Não é fanfarronada, rapaz, é a fatalidade. Aliás, eu o provei! Mas, voltemos atrás. Para começar, forjei uma lenda. Quando da morte da minha mãe, uma mulher boa e fiel às tradições judaicas, fiz dela uma cristã, filha de um militar aposentado. Convenci-me tanto disso que passou a ser para mim uma realidade, acompanhada, como num romance russo, por detalhes os mais convincentes. Mas isso fazia de mim apenas um mestiço, e que queria ser cristão puro-sangue. Imaginando um adultério com um rico proprietário da Silésia, afastava deliberadamente de meu nascimento meu pai israelita que, nesse ínterim, tinha por sua vez deixado este mundo sórdido. Nada de audacioso nisso. A natureza me favorecera. Eu era louro, do mais puro louro germânico (teve novamente o seu riso desagradável); a conformação do meu rosto que, inegavelmente, nada tem de oriental, lembrava desde a minha infância o tipo de camponeses que tínhamos em casa. E depois, a vontade modela os traços. No último ano do liceu, já me assinava Waremme. Por adoção; meu pai adotivo era um escritor católico que se dedicava à propaganda e redigia pequenos tratados religiosos; era louco por mim e tinha-me em conta de gênio.
Outro personagem cuidadosamente psicologicamente construído é o Barão Wolf von Andergast. Quando era ainda um jovem promotor, foi ele o responsável pela acusação no processo que culminou com a condenação de Leonardo Maurizius. Quase vinte anos depois, o réu ainda apodrecendo na cadeia por um crime que já não se tem mais certeza se cometeu, o Barão retoma o estudo dos autos do processo. É esse, aliás, o jeito de se fazer justiça quando a matéria envolvida é a lei e quando existe alguém querendo que ela seja aplicada por um tribunal.
O Processo Maurizius, como se pode imaginar, não é um livro de literatura jurídica ou de aventura forense. Me informo agora de que é apenas o primeiro numa trilogia que eu não faço idéia de como irá acabar. Ao que parece, vai se seguindo a vida de Etzel Andergast, filho do Barão, entusiasta ao seu próprio modo do seu próprio conceito de justiça. Um conceito, eu diria, bastante responsável, raro ao atribuir o encargo pessoal de se agir segundo a repulsa que a injustiça provoca, mas adolescente e ingênuo, por acreditar que tudo possa ou mereça ser mudado.