domingo, 3 de julho de 2011

Don Quijote de la Mancha - Miguel de Cervantes Saavedra

Estou me sentindo um pouco usurpador do talento literário de Miguel de Cervantes. Deve existir, eu imagino, no catálogo das espécies de leitores esse tipo de pessoa. Genericamente falando, e sem a pretensão de tratar do tema com o adequado rigor científico, o usurpador do talento literário de Miguel Cervantes, tal como eu estou propondo aqui, é mais ou menos aquela pessoa que, alguns anos atrás, leu duas vezes com grande satisfação a história de Dom Quixote, achando que ali ela aprendeu e desfrutou duas vezes de engenhosidades tremendas sobre literatura, e que tempos depois encontrou neste site aqui um arquivo de excelente qualidade técnica, o qual começou a escutar durante a semana, indo e vindo pela cidade. O usurpador do talento literário de Miguel de Cervantes, por definição, desconhece outras obras dele, e não sabe fazer um post organizado no padrão wikipedia com os diversos tópicos de interesse que a história suscita, características ambas que eu por acaso possuo.

Outra deficiência minha, ou cacoete mental, ou, ok, uma simples mania odiosa -- vai depender do grau de indulgência de vocês -- que me faz sentir um pouco idiota em relação a essa história é a minha constante atitude de professorinha primária dizendo que ler é muito bom porque te faz viajar por terra distantes. Eu me degenero, de fato, a este ponto. Lendo e, agora, ouvindo a história, volições incontroláveis arrebatam o meu ânimo e me fazem pensar e divulgar a ideia de que quando você está dedicando a sua atenção a Dom Quixote, mais do que ficar em silêncio olhando para um livro ou tombar o pescoço para ouvir bem cada palavra no som do carro, em verdade você está um pouco numa jornada intelectual.

Vocês viram que eu cheguei a usar essa expressão, jornada intelectual, e chego a quase colocar umas aspas ou então pelo menos colocar em itálico. Com um princípio assim, tão malévolo, é assustador pensar até onde esse surto pode prosseguir. Sei que o caminho é lúgubre e umas frases inspiradoras e de máxima condescendência me ocorrem para descrever a minha experiência com essa história. Posso ser ouvido dizendo coisas como "A sequência das palavras da história, sou levado a sustentar, vai despertando em você um não sei quê de sublime, de consternado", e também platitudes nauseantes do tipo "Eu rachei o bico de rir na parte do Dom Quixote se fazendo de fodão lá com o Sancho Pança, quando ele tinha levado o maior preju na orelha. Massa demais, velho".

Um experimento que eu fiz, para continuar falando de experiências e vulgaridades, foi tentar alargar ao máximo a distância entre a minha vida e a de Dom Quixote, isso pelos meios artificiais ali à minha disposição, os quais pudessem completar o serviço que, de resto, eu tentava me convencer de que nem precisava começar a ser feito. Era para ver se, no final, sobrava algum resíduo, anódico que fosse, de afinidade. Para ver se eu também sou louco, quero dizer. Minha prática, nesse domínio, acabou rendendo alguns frutos. Por exemplo, eu descobri um método bastante eficiente para testar se você é Dom Quixote. O método é o seguinte: quando você estiver escutando qualquer coisa que Sancho Pança esteja dizendo, alguma trivialidade que você possa ignorar dando de ombros ou desviando o olhar, tente reparar ao seu redor se você consegue ver uma SUV te pedindo passagem para ultrapassar. Na vida moderna isso acontece toda hora, com a mesma frequencia que, nos tempos de Dom Quixote, uma grande aventura se produzia nas estradas manchegas. O que normalmente se deve pensar, nesses casos, e o contrário significa problemas mentais graves, não pode ser muito diferente de "opa, é melhor eu deixar me ultrapassar isto que, ao meu parecer, não é a carruagem de gente baixa e soez, até por que se tem por certo e averiguado que eu arrematadamente não dei o raio da seta aqui... A propósito, eu não acredito que a pessoa no banco do carona esteja em cativeiro".

Outra coisa que eu fiz algumas vezes foi programar o ipod para o aleatório. Com esse expediente o que se obtém não é exatamente um bom termo de comparação entre o seu comportamento e o comportamento de Dom Quixote, para uma mesma situação que acometa a ambos (cagada no trânsito, por exemplo). O que se consegue com esse expediente é a chance de refrescar o seu espírito então imerso em medievalidades com um pouco de Fiery Furnaces, I'm gonna run. Isso, eu destaco, é bem frívolo e deve ser incentivado. Os arquivos da transmissão não costumam ter menos de 10 minutos de duração e geralmente têm mais de 15, dependendo dos favores e desfavores, caprichos e comandos, com os quais algum sábio encantador, pela via de encantamento, pode encantar quem estiver escutando; é um tempo suficiente, de toda maneira, para suscitar um engajamento minimamente profundo. Aí, do nada, você perturba a sua concentração de uma forma que jamais poderia acontecer com os personagens aos quais, até alguns segundos, você estava dedicando a sua inteira atenção. "Como se volta disso?" , é a pergunta que eu não tenho a menor noção de como responder. Mas se tem alguém que mostrou que se pode ir e voltar de qualquer lugar, e isso eu posso afirmar com olímpico oblívio de pessoas como Henry Ford e o inventor bipedismo terrestre, este alguém é o ora usurpado Miguel de Cervantes.

Por uma grande coincidência, a outra obra literária que eu estava lendo por esses dias, também do modo fragmentário, é uma espécie de manual para nós outros, os usurpadores de Miguel de Cervantes. A minha escolha, é verdade, foi pensadamente no autor, muito embora o formato mesmo da maioria dos seus livros tenha sido a característica fundamental para que eu decidisse me propor a reservar e ler os livros de Jorge Luis Borges, entre isto e aquilo que eu faço durante o dia, 10 minutos de alguma hora antes do almoço, e 10 minutos de alguma hora depois do almoço. Num dos mais famosos livros deles, Ficções, que eu só fui comprar agora, tem lá a história de Pierre Menard, a quem Borges fez escrever o exato e mesmo livro que Miguel de Cervantes já havia escrito, para dizer coisas que as palavras ditas por Miguel de Cervantes, porque ditas por Miguel de Cervantes, não poderiam dizer.

A ideia é assombrosa e no elevador, às vezes, algumas pessoas protestam.
 
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