sábado, 31 de janeiro de 2009

The Witches of Eastwick - George Miller



Uma pessoa chamada John Updike poderia virar outra coisa que não uma escritor americano muito famoso do século XX? Eu acho que não. Pra mim ele já nasceu condenado a ter as pessoas se referindo a ele com uma espécie de entusiasmo auto-satisfeito. "John Updike, quem disse isso foi John Updike". A mesma coisa com Jack Nicholson. Eu não sei se realmente nomen est omen, nem consigo pensar no significado do nome desses dois que pudesse simbolizar alguma coisa de interessante. Considerando o que eu penso sobre J.N, no entanto, a minha sugestão seria a de que Nicholson é uma corruptela da expressão celta "aquele que sabe levantar as sobrancelhas macabramente". Seguindo por aí, este é um dos filmes que mais permitem J.N cumprir e exercer o papel que a natureza escolheu para ele. Até pelo contraste que ele representa, por exemplo, com a morfética Cher ou com a insípida Susan Sarandon. Acho que eu gostei bastante da mansão que ele adquire na cidadezinha de Eastwick, que mais parece um castelo inglês do que a sede de uma fazenda americana. Só para esclarecer, o personagem dele é um tipo de miasma diabólico que aparece na cidade numa bela manhã. Na noite anterior, três amigas insatisfeitas com a vida, um pouco bêbadas, fantasiaram sobre a chegada de um homem capaz de mudar suas vidas. Uma vez que o desejo delas sempre se realiza se elas estiverem mentalizando juntas -- ainda que elas próprias não tenham essa intenção, ou mesmo desconheçam esse poder --, um tal de Daryl Von Horne surge do nada para dar seguimento à história. Numa cena eles jogam uma partida de tênis com uma bolinha que não se submete às leis da física e o personagem de J.N aplica uma raquetada para o alto. Não é um lob, é uma raquetada para o alto. Ultimamente eu tenho pensado em raquetadas para o alto como uma forma de saque. Seria uma adaptação ao "jornada nas estrelas" inventada por aquele jogador brasileiro, só que tentando dar um spin na bola. Quando ela caísse ela poderia ir para qualquer direção, assim desarmando a defesa do adversário. Num dia de sol esse saque poderia ser especialmente eficaz. Seria ferir o elevado código de conduta que os jogadores de tênis normalmente obedecem em quadra? A se pensar.

Bonnie and Clyde - Arthur Penn


Não sei como esse filme é um dos prediletos da minha infância. Não sei onde eu via ou quem me deixava assistir. A memória que eu tenho, um pouco nebulosa e imprecisa, não é errada. A cena final das metralhadoras não me deixa mentir. Tenho ainda uma outra lembrança da história de Bonnie & Clyde de um desenho, acho que uma versão de Esqueceram de Mim que passava em algum lugar.

O mais nostálgico é a trilha sonora totalmente hillbilly. Revendo o filme, não pude escapar da sensação de imaginar Bud Spencer aparecendo a qualquer momento e dando estrepitosos murros em alguém. Mas em termos de figuras histórias dando as caras, nada supera Gene Hackman. O filme é de 1967 e ele já estava com aquela mesma cara. Já era careca. Já se parecia com alguém não merecedor de confiança. Eu não entendo como ele entrou para a carreira in the first place. Não tem um filme dele em que ele não apareça com aquela mesma cara. Senhores e senhoras deste suposto júri, isso não faz sentido.

Ele conta sempre uma mesma história, sobre um filho que colocava um pouquinho de álcool no leite da mãe para atender a ordens médicas. Sem saber de nada, a mãe bebe o leite e começa a gostar. Faz isso por uma semana, a cada dia bebendo um pouco mais do que no dia anterior. Vem, então, uma punch line chocantemente sem graça. Ele ri como uma criança. Eu adorei quando ele foi contar essa mesma história para um casal que eles tinham acabado de conhecer. Eles, quero dizer, os integrantes da Barrow Gang. E o varão desse casal é ninguém menos que Gene Wilder. Enquanto Hackman vai entretendo o abobalhado Wilder e sua noiva -- ambos, incidentalmente, capturados --, todo mundo que está no carro faz uma cara de obsessivo tédio. Seria uma foto perfeita, para quem gosta de registrar esse tipo de coisa.

Igualmente memorável é o recrutamento de C.W. Moss para a gangue, ele que até então estava tentando ganhar a vida honestamente, trabalhando num posto de gasolina, depois de uma temporada passada num reformatório. Bonnie lhe pergunta se ele saberia dizer que tipo de carro era aquele que ela estava dirigindo. Ele responde com todas as especificações possíveis. Ela diz que ele está errado. Ela diz que a primeira especificação a ser considerada é a de que o carro é roubado. Ali foi o primeiro olhar de C.W. sendo desviado da sua interlocutora, o seu primeiro pensamento de que ele estava em apuros. Quando ela se apresenta como ladra de bancos, o paninho que estava nas mãos de C.W é atirado ao chão, como dizendo "I'll be damned". Socos de incredulidade na pilastra de madeira. A expressão de quem está prestes a sucumbir a uma tentação, a expressão de quem quer mostrar que tem coragem suficiente para sucumbir a uma tentação: taí o que diferencia o homem dos animais.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Mudando um pouco

Que as pessoas não mudam é uma mentira injustificada. Elas mudam o tempo todo. Algumas delas, pelo menos. Alguma parte delas, pelo menos. E o mais curioso é que uma coisa é a que mais faz as pessoas mudarem: outras pessoas. Ao lado de dinamites explodindo numa distância curta, outras pessoas são as que mais afetam as pessoas. Às vezes a pessoa catalisadora da mudança nem se dá conta disso. Eu conheço pessoas que alteraram profundamente o que eu penso sobre a vida e como eu me comporto diante dela que não fazem ideia do quão forte é a influência que elas exercem sobre mim. E não estou falando de escritores mortos, de imperadores romanos mortos convertidos ao cristianismo, de navegadores mortos que cruzaram o Atlântico. Não estou falando, tampouco, das minhas avós. Estou falando de pessoas que eu pude observar falando, pessoas de cujas existências eu por acaso tomei conhecimento. Pessoas que num minúsculo aspecto de suas vidas me mostraram formas de ser e de pensar que até então eu desconhecia. Tudo isso mesmo numa convivência muito pequena, quase inexistente e que não poderia causar a menor sensação. Duas delas me ocorrem agora que literalmente ignoram o fato de eu ser mais que um vulto entre vultos, um nome entre nomes. E se eu digo que eu sou mais que um vulto entre vultos, mais que um nome entre nomes, evidentemente eu não estou querendo sugerir mais do que uma simples constatação: a de que, do meu ponto de vista, distraído o quanto se queira, eu tenho existência integral, 24 horas por dia, o tempo todo algum pensamento individual sendo produzido, alguns sentimentos sendo experimentados, a cada instante um instante se acumulando a outros instantes para formarem uma historinha pateticazinha. Mas para essas duas pessoas eu não sou nada disso. Sou só aquilo. Elas não podem imaginar como eu mudei depois que as conheci, por que eu as conheci. Quando eu disse que eu desconhecia as formas de ser e pensar que eu vi nessas pessoas, no entanto, uma coisa deveria ter ficado mais clara. Eu não fui, e seria ridículo pensar que sim, surpreendido por novidades impensáveis. Elas não chegaram a revolucionar tudo que eu pensava saber sobre a raça humana. Muito pelo contrário, até. Elas simbolizam exatamente as melhores partes que eu, já e sempre, conseguia imaginar que existissem em pessoas, mas que eu nunca tinha visto de perto. Ou mesmo de longe. O que eu quero dizer é que eu ainda não tinha visto o que eu acho que existe de certo e de bom materializado tão bem. Já tive a chance de observar qualidades isoladas, já tive a chance até de observar pessoas com raras qualidades reunidas. Para além de um certo ponto, porém, e esse ponto não precisa nem ser exagerado, a pessoa detentora de um certo número de qualidades especiais se destaca de uma maneira muito expressiva em relação ao resto. Estou falando de pessoas que eu não conseguiria enquadrar no resto das pessoas que eu conheço, exceto num nível muito primário e elementar, como o do resto das pessoas que eu conheço que possuem pernas e braços, que praticam a respiração aeróbica, que acreditam em datas. Só nesses pontos elas se identificam com as outras amostras humanóides que eu já tive a oportunidade de examinar. Está claro que eu não poderia agradecer a utilidade que me é prestada por elas. Se eu tivesse que fazer isso, meu ato seria falho logo no nascedouro. Ainda estou no ponto de tentar compreendê-las melhor. Uma delas é de uma inteligência tão tranquila que seria capaz dissuadir uma matilha esfomeada de pular numa piscina de linguiças (de onde eu tenho tirado essas coisas, hein? Que idiota.Outro dia foi o tal do corretor de imóveis numa caixa de sapato). A outra, de um bom gosto impressionante. Eu acho que se eu precisar descobrir uma coisa da qual eu queira gostar, é mais fácil eu tentar falar com ela do que eu tentar pensar sozinho. No futuro, talvez, eu tenha a chance de estar mais próximo a essas pessoas. Isso vindo a acontecer, para mim,seria muito bom. Não vindo a acontecer, mesmo assim eu já serei um legatário de um vasto acervo de coisas legais. Daqui para frente será comigo. Eu mesmo terei que levar adiante conversas imaginárias com essas pessoas toda vez que precisar de uma consulta específica. Chegar ao limite da minha capacidade de ficção, em todo caso, e particularmente nesse caso de inventar diálogos, sempre foi algo que eu tentei fazer com algum senso de diversão. É uma diversão muito barata, posso dizer. Fico impressionado com o número de pessoas que eu vejo na rua e que só pela expressão eu posso dizer que não estão inventando maluquices cerebralmente. O que essas pessoas têm para fazer que é tão melhor assim? E o que isso tem a ver com o que eu estava falando no início? Que as pessoas mudam... sim, elas mudam, mas não para deixar de ficar com um cara esquisita enquanto eu as vejo na rua. Ao que eu posso acrescentar: eu mudo. Eu mudei. Duas pessoas até fizeram uma diferença nesse processo. Só está faltando eu conseguir um pouco da inteligência e do bom gosto delas.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Lohengrin - Vorspiel - Furtwangler

Nesta semana não vai ter youtube incorporado. A performance ao vivo que eu escolhi está disponível apenas em link. Aqui. Mas esperem. Mesmo para quem conhece a obra, devo alertar para a raridade dessa versão. Ao que tudo indica é um Furtwangler original, de 1930. Preciso dizer que essa é a música mais caprichada que eu conheço. A mais detalhista. A que mais é exatamente como deveria ser. Um boa inspiração, talvez, para a semana. Hell, para a vida. E lá vai a platitude: viver é algo que se pode fazer de maneira caprichada; é algo que merece ser feito de maneira caprichada. Minha noção de capricho, é claro, não tem nada a ver com um cisne, que aliás considero um animal desengonçado e pouco asseado.

Planet Terror - Robert Rodriguez



Eu me lembro de ter lido em algum lugar que quando o Nirvana foi gravar o clipe de In Bloom, e querendo que a fotografia tivesse um efeito envelhecido, em vez de acrescentar artificialmente esse efeito por computador, alguém teve a idéia de pegar uma câmera antiga e que já não estivesse funcionando perfeitamente bem. Acho que essa solução é bem melhor do que o resultado obtido neste filme. Que tirando essa pequena ressalva é excelente em todos os outros aspectos. Meu amigo me explicou que o lançamento foi em conjunto com o Death Proof, lá nos E.U.A os dois filmes sendo exibidos de uma vez só nos cinemas. Uma outra amiga já tinha me dito dessa simbiose, embora à época eu não entendesse bem a informação. Bons amigos, eu tenho. Comemoro, ainda, o fato de não ter precisado bloquear a minha visão em nenhuma cena especialmente repugnante. A maior parte do tempo, por exemplo, eu estava rindo, é claro. Como na hora em que o ajudante do hospital reclama das malditas noites de quarta-feira, as suas vísceras sendo consumidas no ato por canibais mortos-vivos. E basicamente tudo relacionado ao molho de churrasco em breve vencedor de prêmios é engraçado. Como engraçada é a morte repentina do personagem do Naveen Andrews. Ou a intervenção do Tarantino no elevador. Eu não teria talento para escrever qualquer coisa parecida com isso, mas gosto de pensar que eu reconheceria a qualidade do material assim que o visse, ainda que só por escrito. Estou um pouco sem tempo para continuar escrevendo. Fica a ostensiva recomendação.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Shadow of a doubt - Alfred Hitchcock




I heard this was Hitchcock's favorite one. That doesn't seem quite right to me. Unless, of course, he didn't mean his favorite movie. Maybe these were his favorite characters in supporting roles. Those would be Ann and Herbie. Ann is the young sister of the girl (Teresa Wright) that suspects her uncle might be a serial killer. Herbie is the best friend of this girl's father. He is really into figuring out ways of killing people and then boasting about it with his friend, who also distracts himself with that morbid game. They would never get down to business, mind you. They just like talking about ways of having people killed. Herbie's hair is carefully built, I suppose, with some material that: (i) allows no movement; (ii) enfolds itself in a most peculiar way. But let me talk about this Ann. She is something else entirely. To have the chance to grow up near this girl would have transformed any boy with the faintest talent into, I don't know, freaking Chesterton. She reads two books a week, and I don't mean tax law reviews. Her response to her mother's screaming at the telephone device was one great sample of one cute bad temper. "Really, Papa. You'd think Mama had never seen a phone. She makes no allowance for science. She thinks she has to cover the distance by sheer lungpower."

When the police officer asks her to quietly call her sister to the have a conversation about murder stuff, she says she doesn't have to call her quietly. "Did my father have a feud with yours?" "My father?" " Because if they didn't, there's no sense in my asking Charlotte quietly. Mama won't care. She thinks girls ought to marry and settle down". Like I said, I would understand if Hitchcock had preferred this over any other piece of acting that he might have obtained from any other actor under his direction. But that he would even consider Shadow of a Doubt to be worth of being in his top 3 movies, that I don't get. To me, at least, there were no memorable scenes. And the plot was not that spectacular either.

Viridiana - Luis Buñuel



Hum... a questão é saber se um filme em que o próprio personagem coloca Mozart para tocar numa vitrola, na intenção de criar um ambiente apropriado ao consumo de café, só por esse motivo se salva. Ou se para a sua definitiva redenção nós também temos que considerar que esse personagem droga a sobrinha e praticamente date-rapes her. E que essa sobrinha vem a ser nada menos que uma noviça prestes a se tornar uma freira. Mas não é só esse tio que tem bom caráter nessa história. Tem também um outro personagem, um mendigo que é acolhido pela Viridiana, que eu gostaria de pensar que é só mentalmente enfermo. Mas parece que não. Parece que existe uma outra moléstia na história, umas marcas indiscerníveis à distância e em p&b. Ora, não sabendo se a doença que ele tem é, ou não, lepra, quando ele vai à igreja, dizem, ele enfia o braço na pia santíssima pensando: tomara que todo mundo pegue esse mau. Outras delicadezas refinadas vão se somando ao seu acervo. Esse mesmo sujeito será visto, mais tarde, roubando o vestido de noiva da falecida esposa do falecido dono da casa - e se apresentando perante a assembléia de brutos que está se aproveitando da caridade da Viridiana para banquetear. Ele então dança como nós pensamos que as pessoas do Egito antigo dançavam só por causa daquelas pinturas em duas dimensões que nós conhecemos. E, ainda por cima, suja a sala inteira com as penas de uma pomba que ele tinha encontrado no campo. A essa altura, obviamente, uma guerra total de comida era uma questão de tempo. Assim como era iminente que alguém se aproveitasse para praticar sujidades atrás do sofá. Na confusão do momento, uma anã principia passos de moonwalk. Volta a se tocar Handel, que já tinha sido tocado na apresentação dos créditos. Minutos antes, aliás, um bonito enquadramento já tinha mostrado todos os mendigos naquela posição daquela que é a mais conhecida versão da Santa Ceia. A bagunça é generalizada. Também, os benfeitores desse povo todo, a Viridiana e o seu primo Jorge, estão fora de casa, com a previsão de só voltarem no dia seguinte. Vocês se lembram daquela cena em Weird Science? Daquela em que eles precisam dar um jeito na bagunça porque os pais do Wyatt estão voltando de viagem e não podem encontrar a casa no estado deplorável que ela estava depois de ter sido realizada uma festa que simplesmente foi invadida por uma gangue de motoqueiros armados? A Mulher Nota Mil, usando seus poderes mágicos, faz os móveis retornarem ao seu lugar adequado instantes antes do momento fatídico. Um piano, se eu não me engano, entra e sai pela chaminé e vai parar na piscina. Eu pensava que algo de semelhante de alguma forma iria acontecer na Casa Grande e que os mendigos iriam se safar. Em vez disso, quando Jorge chega em casa e se depara com a algazarra, encontra-se a maneira gentil de não o escandalizar: quebrando-se uma garrafa na sua cabeça. Viridiana, que chega alguns segundos depois para encontrá-lo estendido no chão, quer saber o porquê daquilo. Ah, alguém responde, ele estava procurando por isso. E agora é hora de mais alguém date-rapes her. Depois se pega um baralho, joga-se "tute", tudo fica certo.

Mean Streets - Martin Scorsese


Aqui. Uma continuação do Who's that knocking at my door. Só que com Robert De Niro soltando bombinhas pela vizinhança, doidamente fustigando seus credores e então postergando suas dívidas até o limite do possível, nisso sendo ajudado por um primo semi-mafioso cujos maiores ídolos são John Wayne e São Francisco de Assis -- e que, despertando no meio da noite de um pesadelo, começa o filme sustentando o seguinte: "you don't make up for your sins in the church. You do it in the streets. You do it at home. The rest is bullshit and you know it." Ele se levanta da cama assustado. Italiano, está vestindo uma camiseta branca. Detém-se por alguns instantes em frente ao espelho, enquanto umas sirenes de polícia tocam no final da madrugada, no lado de fora. Por uma última vez leva as mãos ao rosto. A partir daí começam os créditos. A música é Be My Baby, The Ronettes. Mas eu não achei que os outros personagens que vão se alinhando a esses dois sejam notáveis por sua malignidade -- por exemplo, o tio rico a quem as pessoas se dirigem pedindo conselhos; o dono do bar em torno do qual gira a vida de todo mundo; os agiotas; as dançarinas. Aliás, o dono do bar tem uma cara muito boa. O agiota só bem no final é que procura acertar a jugular do devedor. E a dançarina é a Beyoncé nua. It's all about Johnny Boy, though: entrando no bar em câmera lenta, Jumpin' Jack Flash tocando, abraçado a duas garotas, um chapéu de 25 dólares na cabeça e as calças entregues na portaria. O simpático dono do bar pergunta se aquela era a cueca que tem uns corações. Tudo bem que os solilóquios de Charlie (Harvey Kietel) também são muito bons. Por exemplo, logo que ele vê o seu primo Johnny chegar ao bar da maneira descrita acima, preocupado pelo motivo de o agiota estar cobrando dele uma dívida que o seu primo não dava o menor sinal de querer quitar, e conversando com Deus, Charlie diz: "All right, okay. Thanks a lot, Lord. Thanks a lot for opening my eyes. You talk about penance and you send this through the door." Outro ponto de vantagem. A briga que é mostrada, é mostrada braçal e desorganizada como toda briga de não-profissionais deve ser. Mas, uma vez mais, o melhor é a cara do Johnny Boy: em cima da mesa de sinuca, chutando e quebrando o taco em tudo que se move à sua frente, uma versão de Mr. Postman tocando.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Lost - Because you left / The Lie


You lost me. Não assisti ao episódio zero da quinta temporada para me lembrar da pletora de detalhes deixados em aberto no fim da quarta temporada. E exigir que, meses depois, eu me lembre de alguma coisa, por pura força cerebral, nem preciso dizer que isso é tão inútil quanto um corretor de imóveis dentro de uma caixa de sapatos. Nesse ponto, felizmente, eu não estou sozinho. J.J Abrams himself parece não se lembrar direito de muita coisa.

Mas continuarei assistindo. E não fico encabulado de dizer que agora a coisa prossegue muito mais por inércia do que por entusiasmo. Sim, meus amigos, eu perdi o entusiasmo. Antes eu o tinha, agora não o tenho mais. Só por algum motivo, que para ser franco eu ainda não sei bem qual é, eu ainda não consegui juntar forças para simplesmente desistir. E olha que eu venho sustentando há muito tempo que contribuem para humanidade, tanto quanto aqueles que insistem nas boas ideias, os que prontamente desistem das parvoíces ordinárias -- aliás, gosto de pensar na minha existência como uma sucessão desse tipo de contribuição para a raça humana. Bom, e voltando ao assunto, se talvez seja verdade que continuar assistindo a Lost não chega a ser uma parvoíce ordinária, boa ideia, isso é que não é. Até agora, parece, foram 85 episódios. Pensar que eu gastei umas 85 horas da minha vida assistindo a essa coisa só não chega a me deprimir pelas alternativas que estavam ao meu alcance. Porque, em todo caso, é muito tempo dedicado a algo que já perdeu os últimos vestígios de significado, de coerência e de lucidez.

Esses dois episódios novos terminaram mais ou menos assim. Os que tinham saído da ilha estão quase chegando a um consenso de que é preciso voltar. Ninguém menos que o próprio Ben está cuidando da logística dessa operação. Jack, por natural, é o mais desesperado. John Locke, que aparecera cadáver no final da quarta temporada (disso eu me lembro porque quando se noticiou que a pessoa morta atendia por Jeremy Bentham, qualquer um poderia descobrir que era uma alusão ao Locke), é visto, em flashbacks, assomando pela floresta e dando facadas providenciais nos inimigos. Hurley escapa do hospício com a ajuda de Sayid. Pouca ação acontece no front da Kate e da Sun.

Enquanto isso, na ilha, Daniel consegue arregimentar um pequeno grupo de seguidores, ao oferecer explicações sumamente vagas ao que está acontecendo com a ilha -- isto é, aos clarões ruidosos seguidos do instantâneo desaparecimento/deslocamento de coisas da frente das pessoas. Quem mais o contesta, chegando a esmurrar, é o Sawyer.

Aproveito para fazer mais uma observação desnecessária. Acho que o excedente habitacional da ilha, simbolizado por um tal de Neil que aparece não sei de onde, será continuamente oferecido em holocausto para que a história ande. Se é já difícil manter em ordem os mais ou menos 15 personagens que participam realmente da trama, fico imaginando como deve ser complicado, para os escritores, situar (meio que escondendo, na verdade), uma sessenta pessoas dentro de uma única ilha. Uma forma que eles encontraram de liquidar algumas vidas foi atravessando flechas incandescentes por cima das árvores e fazendo com que elas penetrassem o organismo das pessoas mais distraídas. E fizeram questão de mostrar pessoas sendo atingidas e sendo deixadas ao Deus dará. Parcimoniosa muito além de qualquer limite, a Juliet ficou tentando jogar terra em cima de um incinerado. Precisou vir o Sawyer e arrancá-la do estupor.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Refeição perpétua

Hoje mais cedo eu me questionei se já estaria na minha hora de adotar uma espécie de refeição perpétua. Como o Mr. Steinbrenner com o seu calzone, acho que eu encontrei um lanche que eu posso permanecer comendo por décadas. É um sanduíche de filé mignon, no pão árabe, com requeijão, batata palha e vinagrete. Esquentado na chapa, eu prefiro. Antes de me comprometer com qualquer prato, posso dizer que eu experimentei muita coisa desse restaurante. Cheguei a gostar bastante de alguns sanduíches montados -- lá você pode escolher um monte de ingredientes, de frios a complementos de salada, vários tipos de pastas e pães. O problema foi que se em algum dia eu tivesse aprovado a combinação inventada na hora, no outro dia eu já não me lembrava o que eu tinha escolhido. E, na tentativa de repetir o prato do dia anterior, muitas vezes eu estragava, escolhendo péssimos componentes, o lanche do dia seguinte. Esse tormento para o meu cérebro e para o meu estômago, pelo menos, chegou ao fim. Porque, ao pedir o sanduíche de filé mignon, automaticamente você já é perguntado se vai querer o requeijão, de modo que você só tem que guardar na memória o pão árabe -- e eu sempre peço pão árabe --, o vinagrete e a batata. O lugar, é uma pena, não permite que eu tenha uma mesa predileta e tradicional. Mas eu não duvido nada que daqui a pouco eu já estarei dizendo que a vida é uma coisa doce.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Slapstick - Kurt Vonnegut



This day will live in history as the day the first six-fingered, multi-nippled, neanderthaloid monster, with massive brow-ridges, sloping forehead, and steamshovel jaw, becomes President of the United States. He is two meters tall. His name is Dr. Wilbur Daffodil-11 Swain. His main program consists in creating artificial extended families throughout America, as to abolish loneliness.

***

Kurt Vonnegut himself tells us that this is the closest he will ever come to writing an autobiography. With that and the bizarre character of Dr. Wilbur in mind, one can only wonder about what sort of a nutcase he really was. It is very endearing, however, to read about Eliza Mellon Swain -- Dr. Wilbur's dizygotic twin -- knowing Kurt's feelings towards his own deceased sister. "For my part, though: It would have been catastrophic if I had forgotten my sister at once. I have never told her so, but she was the person I had always written for. She was the secret of whatever artistic unity I had ever achieved. She was the secret of my technique. Any creation which has any wholeness and harmoniousness, I suspect, was made by an artist or inventor with an audience of one in mind. Yes, and she was nice enough, or Nature was nice enough, to allow me to feel her presence for a number of years after she died -- to let me go on writing for her."

Besides his sister, Vonnegut dedicated this book to the memory of Arthur Stanely Jefferson and Norvell Hardy, two artists he considered to be angels of his time. Slapstick it is, like a warning label, like he is saying: hey, you oughta know that in this story people will be crashing one another nonsensically. And drooling. And babbling.

And you have to laugh. This is a picture of a button part of the country went on wearing as opposed to the Lonesome No More! campaign button. For there were those who didn't want to take part on the program of artificial extended families -- that, basically, was the adoption of randomly selected new middle names, by the use of which everybody should become a member of a gigantic family. Of course some snob individuals that praised too much their own blood heritage felt disinclined to enroll. But this program would actually not only abolish loneliness, but would also solve another annoying problem: beggars. Like this:


"And consider how much better off you will be, if the reforms go into effect, if a beggar comes up to you and asks for money", I went on. "I don't understand", said the man.

"Why", I said, "you say to that beggar, 'What's your middle name?' And he will say 'Oyster-19' or 'Chickadee-1,' or 'Hollyhock-13', or some such thing.

"And you can say to him, 'Buster -- I happen to be a Uranium-3. You have one hundred and ninety thousand cousins and ten thousand brothers and sisters. You're not exactly alone in this world. I have relatives of my own to look after. So why don't you take a flying fuck at a rolling doughnut? Why don't you take a flying fuck at the moooooooooooon?'"


The "Lonesome - Thank God!" button.

Make Mine Mink - Robert Asher


Pessoas roubando casacos de pele por uma causa genuinamente humanitária, a de reverter o produto do crime para instituições de caridade. Nenhuma instituição, reparem, de defesa aos animais. Nenhum ataque histérico sobre o assunto. Aqui. Com direito a Terry Thomas reclamando veementemente da estupidez de uma das suas comparsas.

Be Your Own Pet - Becky

The Rainmaker - Francis Ford Coppola



Só mesmo o fato de Danny DeVito não conseguir passar na BAR é menos previsível do que todo o resto do filme. O douto John Grisham vai me perdoar. Come on, um jovem e pobre estudante de direito avança na faculdade enquanto mantém trabalhos noturnos em bares; pega, ainda no escritório modelo, um caso contra uma companhia de seguros e, aliado ao rábula DeVito, faz a justiça do caso concreto, desmantelando um esquema de sistemático abuso da empresa contra a clientela de baixa renda? Tudo isso para no fim descobrir que ele na verdade não foi feito para o direito, e que o sensato mesmo é fugir com uma mulher que sofria espancamento de um jogador amador de beisebol. Leiam novamente a última frase com um ponto de interrogação no final. Então. Só duas prateleiras na minha locadora, eu deveria saber, podem ser utilizadas. Mas -- e vamos para o tradicional giro em que eu saio de um afirmação mais ou menos genérica sobre o filme para comentar, como se todo mundo também tivesse acabado de assistir, um cena bastante específica --, mas, eu ia dizendo, eu acho muito legal a pessoa sendo acordada abruptamente por uma causa detestável ou simplesmente fútil. Eu mesmo tenho experiência pessoal com isso. Matt Damon, pelo visto, também tem. Uma velhinha empurrando um carrinho de mão, arremessando da maneira menos discreta possível um monte de instrumentos metálicos de agricultura doméstica, e cantando You are my sunshine, my only sunshine -- eu respeito esse violento chamado para o mundo dos acordados como um dos piores já produzidos. Perto disso, alguém me acordando às sete da manhã de um sábado para me dizer que pegou umas meias emprestadas é pouca bobagem.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Happiness - Todd Solondz


Melhor ter assistido do que não ter assistido. Agora, dizer que eu gostei é outra história. Em nenhum momento o total desamparo dos personagens me provocou sentimentos de simpatia. E dado que eles jamais poderiam ser admirados, ficou um vácuo entre mim e o filme que eu não saberia preencher. Eu concedo que a família Jordan/Maplewood, como produto de ficção, saiu divertida. Concedo também que, se você aceitar o comportamento doentio das pessoas como algo que não se pode criticar, mas que apenas pode ser mostrado da melhor maneira possível, então o Solondz terá feito um bom trabalho. Acho, na verdade, que ele fez um bom trabalho. Como não achar que ele fez um bom trabalho, por exemplo, no núcleo Vlad/Joy? Que povo engraçado. Agora eu sei de onde saiu o Vlad do Grand Theft Auto 4, do Xbox. Saiu desse filme. Ele é um imigrante eslavo dirigindo um táxi em Nova Iorque, mal falando inglês, sempre arquitetando um esquema. A Joy foi uma que caiu na sua conversa. Sabendo disso, ele aproveita para abrir o seu coração: "Joy, I must ask you a question", tímido, recatado, com o olhar indefeso. "Yes?", ela responde, igualmente tímida, recatada, com o olhar indefeso. "But I very ashamed.",numa atitude que reconhece a sua própria condição de pária, de alguém que destrói a língua. "I'm sure I'll understand.", compreensiva, atenciosa, com a esperança de que o fato dele só morar, mas não estar casado com a mulher que foi à escola bater na mulher - no caso, a própria Joy - que saiu com o seu amante, com a esperança desse fato significar alguma chance para o seu próprio romance. "Good", e mudando completamente o tom de voz, como se ele estivesse falando com a pessoa mais íntima do mundo, "can I borrow money?" E a encara com um olhar decidido, balançando a cabeça, acreditando em si mesmo "It is very important." "How much?", ela pergunta, ao que imediatamente escuta "One thousand dollars". Alguma reflexão feita, ela aceita que ele a leve a um caixa eletrônico ali perto. Aproveita para perguntar, porque perguntar não ofende: "Vlad, could I first have my guitar and my CD player back?" Eram as coisas que ela percebeu que ele tinha roubado dela. Condescendente, Vlad pensa um pouco naquele pleito e dá a sua palavra final "Okay, it is deal". Essa cena foi muito legal, igualada apenas pela cena em que o personagem do Philip Seymour Hoffmann escuta uma confissão antológica do que a sua vizinha tinha feito com o porteiro do prédio. Com o cadáver dele, melhor dizendo. Mas eles ainda podem ser amigos, diz ele. Afinal, "we all have our, you know, our pluses and minuses."

Europa - Lars von Trier



Difícil saber por onde começar. Acabei de ter uma experiência surreal assistindo a esse filme. Em algum momento eu me lembrei de que alguns anos atrás eu tinha sonhado com o momento em que eu respondia uma coisa muito específica a um comentário que alguém, chocado, fazia sobre uma cena em particular. Cheguei a declarar que o momento era uma repetição, ou talvez até uma projeção do que eu já tinha sonhado, mas não fui levado a sério. Pensaram que eu estava enganado. Mas se isso foi apenas uma espécie de confusão mental, irrelevante ao exame mais superficial que se fizer da situação, devo informar que talvez eu tenha sonhado algumas outras fantasmagorias durante o próprio filme. Tudo a indicar um grande potencial para o universo da imaginação, em todo caso. Teve um momento em que eu cheguei a fechar os olhos e a me desprender da ocasião de estar assistindo a um dvd. Minha percepção se dirigiu a outros planos. Logo depois eu voltei, desperto e ultrassensível. Agora que eu escrevo, me encontro num estado de vigília inconsistente. Também, a história favorece esse tipo de coisa. Imaginem um sujeito que poderia ter uma vida confortável e próspera em Boston, ou em qualquer outra cidade confortável e próspera dos EUA, indo para a Alemanha em outubro de 1945, para trabalhar numa companhia ferroviária. Lugar e época infelizes, conturbados. Você olha para a janela e só vê desordem. Destroços dos bombardeios aéreos; crianças famintas; terroristas misteriosos enforcados; trevas na acepção mais humana do termo. O testemunho da desmilitarização da Alemanha pelos aliados -- com a destruição do pouco que restou do seu aparato de guerra -- é dado daquela maneira conhecida: as pessoas olhando pela janela, o espanto refletido em seus olhos, que se perdem num ponto distante em que as últimas esperanças de grandiosidade vão sendo colapsadas. Mas em qualquer época e lugar, aqueles que olham para fora da janela com um pouquinho de atenção não poderiam ver nada de muito diferente. No caso de Leopold Kessler, o nosso fabuloso Leo, ingênuo e despreparado, o contraste é ainda maior. Ele é recebido com desconfiança por um tio esquisitíssimo; sofre pelo seu jeito americano de engraxar sapatos; apaixona-se por uma mulher que faz questão de confundi-lo. Paga para trabalhar na Zentropa, o derradeiro manicômio europeu.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Welcome to Collinwood - Antony Russo e Joe Russo


I had already seen this movie before. I knew exactly what sort of lowbrow stuff it was supposed to be, being produced by George Clooney and all. I didn't know, however, it is based on an Italian old movie by Mario freakin' Monicelli -- I soliti ignoti. Knowing this really makes me wanna become a member of Netmovies, since the store from which I rent dvd's doesn't have this original version. But I must admit that I don't know if I'm ready for such great a commitment that it is to subscribe to the services of this online store. I'm gonna give a thought, because for this thing to work out for me, I would have to rely on what the doormen of my building are capable of handling by themselves. The result of that reasoning, let me tell you, is not at all favorable. Anyway, this is not a movie that makes you wonder if you would make a fine bank robber. At least I didn't occupy my head with that thought like I usually do. Perhaps that had something to do with the sad expression of desolation with which the characters are first presented to the audience -- when it takes only two seconds to just know that something went terribly wrong... These are not witty, greedy burglars. These are just plain idiots trying to get out of the slumbs. And I know the lack of separate paragraphs on this blog is beginning to be a nuisance. I guess the Internet Explorer is to blame, for I didn't have this problem when I used Firefox. Back to Welcome to Collinwood, I have to say this: I like Sam Rockwell. He was on a version of Piccadilly Jim that sucked, but that was not his fault.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Who's that knocking at my door - Martin Scorsese


No dvd que eu aluguei o título aparece assim. O link para o imbd já aparece como I Call First, essa última uma proposta de escolha muito mais prática do que qualquer espécie de zerinho-ou-um. Quem disser primeiro, assim funciona o jogo, vence. Mas vejo, agora, que essa assunto está realmente me perseguindo. No filme há um momento em que uma decisão precisa ser tomada e nenhuma das cinco ou seis pessoas envolvidas está disposta a se sacrificar pelo bem comum. O problema é resolvido, então, por algo que me pareceu uma combinação de par-ou-ímpar com pedra-papel-tesoura. A cada rodada, pelo que eu entendi, uma pessoa vai sendo eliminada da roda, até ficar apenas uma, que é considerada a grande perdedora. Eu não entendi exatamente qual critério é utilizado para que os vencedores sejam selecionados. E já que outra oportunidade para esgotar esse assunto não me será dada, acho bom eu manifestar também a minha dúvida quanto à razão de o jogo se chamar zerinho-ou-um. Por que não simplesmente zero-ou-um? Sobre o filme, no entanto, o Scorsese não deixou de escolher duas ou três músicas muito apropriadas e tocá-las quase por inteiro em cenas que não vão a lugar algum e que não servem a qualquer propósito narrativo. A impressão que se tem é que elas servem apenas para passar o tempo. São muito boas. Numa delas os amigos não param de rir. O que é um ato de coragem, pois é muito difícil uma cena mostrando alguém rindo ser engraçada para quem está vendo. Acho que também na outra cena em que uma atenção maior é dada à trilha sonora a ação se resume a um conjunto de pessoas rindo sustentavelmente por alguns minutos. São italianos. Na outra vertente do filme mais ou menos inútil do ponto de vista narrativo, porém ideal do ponto de vista das coisas que poderiam acontecer na vida real, as pessoas ficam andando e conversando sobre filmes.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Eichmann - Robert Young


IMDB. Novamente tentando evitar fazer propaganda sobre a questão de fundo, permito-me começar dizendo que escolher Stephen Fry para fazer o papel de ministro foi uma opção ridícula. A expressão de consternado sorridente que ele faz, a expressão de consternado sorridente que todo inglês habitualmente faz, absolutamente não combina com a gravidade da situação. Imaginá-lo levantando as sobrancelhas, curvando o pescoço e juntando as mãos -- do jeito que eu estou imaginando, embora sem conseguir explicar --, numa reação aos sucessos e insucessos do Bertie Wooster, por exemplo, é uma coisa. Até naquele Peter's Friends, vai, dá para aceitar que a notícia de uma moléstia terminal seja dada com alguma forma de desprendimento . Mas, na condição de ministro israelense, na condição de alto funcionário de um dos governos mais estressantes do mundo, fazer a mesma cara numa reação à captura de um alto oficial nazista por anos refugiado na Argentina, aí a coisa já deixa de ser suitable para se tornar, na minha opinião, francamente unsuitable. A melhor cena do filme, em todo caso, é a troca de pratos. Jogos de escolha para três pessoas são muito divertidos. Esse assunto esteve na minha cabeça nos últimos dias. Cheguei a pedir aos amigos que me fizessem o favor de explicar como é mesmo que a gente joga zerinho-ou-um. Porque, na verdade, havia umas sete ou oito pessoas na mesa, e a escolha de quem iria se levantar para pegar alguma coisa precisando ser feita, eu me lembrava de que a simples colocação de um zero ou de um um não iria adiantar. Acabei sendo o voluntário, é claro. Depois me foi esclarecido como funciona o mecanismo do par-ou-ímpar americano, também conhecido como adedanha. Outra coisa foi eu descobrir que a forma correta de se jogar buraco com apenas três participantes, ao que parece, é com uma dupla enfrentando um oponente sozinho. Eu pensava que era todo mundo contra todo mundo -- não que as duas formas não sejam mais ou menos impraticáveis.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Jack and Jill versus The World - Vanessa Parise



Escrevo apenas pela obrigação de atualizar. E também porque foi o único filme a que assisti nesses últimos dias. Alguns filmes são a mesma coisa que os seus trailers. São tão dispensáveis quanto. Dá para imaginar que ainda hoje alguém consiga fazer um trailer dizendo que este é Jack e que Jack... had it all? Em J&J a própria cena inicial do filme faz isso. O trailer também faz essa declaração, é claro, mas o que eu estou falando é que no próprio filme aparece um narrador que se propõe a apresentar o personagem nesses termos. Eu não saberia fazer uma piadinha sobre como é velho e ridículo dizer isso de um personagem de comédia romântica. Posso apenas conjecturar que se alguém teve a idéia de patentear "he had it all", as pessoas que escrevem papéis Freddie Prinze Jr., Matthew McConaughey e quejandos sempre desembolsam um dinheiro a mais. E é aquela mesma voz de trailer. Com a desvantagem, ainda por cima, de desrespeitar a atenção do espectador ao sumir pelo resto do filme e só reaparecer no momento final em que os personagens desfilam num carro conversível.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Hocus Pocus - Kurt Vonnegut


Uma equação para comemorar quase o centésimo post deste transitório blog:

1926 - 2001 = -75
-75 + 1889 = 1814
1814 + 12 = 1826
1826 : 2 = 913
913 - 900 = 13
13 + 69 = 82

Só quando eu já estava terminando de ler é que a última folha se desatou do resto do corpo do livro, muito mais por culpa minha do que por defeito do produto. Aliás, comprei esse livro na Estante Virtual, na mão de um livreiro bastante solícito. Tão dedicado, eu pensei quando eu fui retirar a minha reserva e quando acabei conversando um pouco com ele, que se por acaso ele souber brincar de estátua, ele pode facilmente ganhar a vida num museu de cera em que o curador queira expor a réplica exata do que era o Woody Allen, por volta de 1991.

Eu tentarei escrever um pouco sobre a história para que assim eu tenha a chance de ir pensando com calma no que pode ser o seu significado. Muito bem. A narrativa é em primeira pessoa. Um veterano da guerra do Vietnã voltando aos Estados Unidos não para se embriagar avidamente e acrescentar mais um débito na conta da Seguridade Social, mas para levar a vida como professor no interior. Eu já não me lembro exatamente de como isso acontece. Foi a convite de um major, ou de algum militar superior, se eu não me engano. Acho que foi a mesma pessoa que, muitos anos antes, ao esbarrar com o Eugene -- o nome do personagem principal -- saindo de uma feira de ciências escolar na qual ele e seu pai haviam tentado perpetrar uma fraude acadêmica, o chamou para se alistar na escola de West Point.

Como usualmente acontece nos livros dele, numa trama em princípio simples aos poucos vão se apresentando desdobramentos imprevisíveis, vão sendo feitas alusões históricas e artísticas desconexas, vão se repetindo idéias fixas obsessivas, tudo isso fora de uma cronologia linear. O ponto máximo de regresso, eu acho, é ao final do século XIX, época da fundação da universidade da qual ele se tornaria professor. De alguma forma essa universidade se especializa em conceder títulos meramente simbólicos a pessoas com patologias diagnosticadas no setor da aprendizagem. Já o futuro é realmente futurista: em 2001 (o livro é de 1990) os EUA se tornam uma nação cujo controle é dispersado entre empresas estrangeiras e milionários árabes. A administração do principal presídio do livro, por exemplo, é feita por uma empresa japonesa.

A todo o tempo o mundo corporativo é comparado a situações de guerra. O chefe da missão japonesa que chega para tomar conta do presídio, por exemplo, é um sobrevivente do ataque nuclear a Hiroshima. Isso serve de pretexto para muitas divagações, a principal delas sendo uma espécie de absolvição moral implícita que é dada ao personagem, talvez o único que não mostra uma natureza torpe quando eclode um grande motim na prisão.

As páginas vão sendo lidas. Algumas coisas vão acontecendo enquanto outras coisas não vão acontecendo. Por exemplo: Eugene mente como pode para conquistar uma mulher num bar das Filipinas. Muito tempo depois, aparece um filho batendo à porta do seu gabinete. Depois de receber uma carta escrita em segredo por sua falecida mãe, o garoto passa a admirar este grande herói tristonho que deve ter sido o seu pai. Alguém a quem tenham acontecido tantas tragédias, afinal de contas, devia ser alguém de caráter. Na única noite que passaram juntos, em todo caso, Eugene inventou algumas mentiras que aceleraram a sensibilidade da mulher quanto à delicada questão de ir para a cama com ele. Mentiras que, mais tarde, moribunda, ela repassaria ao filho, escrevendo uma carta que só poderia ser aberta muito tempo depois. Estamos, agora, no momento em que o filho já leu a carta e finalmente encontrou o pai que ele nunca havia conhecido. Demonstrando toda a sua consternação com o passado:

"You have certainly had some bad luck", he said. "Your father [que nunca botou os pés para fora dos EUA] comes home blind from the war. Your childhood sweetheart [criatura fictícia que todo garoto tem a fantasia de existir, afinal] is hit by a car right before senior prom.
Your brother
[que não nasceu nessa vida] dies of spinal meningitis right after he is invited [o irmão simplesmente não existe, okay?, é tudo uma mentira inventada pelo Eugene] to try out
for the New York Yankees."

domingo, 4 de janeiro de 2009

Lynyrd Skynyrd - Roll Gypsy Roll

Russkiy kovcheg - Aleksandr Sukorov



Um filme muito bonito de se ver. E também, parece, revolucionário, fenomenal, épico. Consigo pensar num monte de palavras que poderiam descrevê-lo acuradamente sem, no entanto, resumir de maneira satisfatória o que eu achei que é o mais importante: que é um filme muito bonito de se ver. Prestei atenção nas entrevistas que estão no dvd e uma referência que é feita por todos os envolvidos é a ausência de compressão das imagens, as quais teriam sido captadas por uma câmera digital e transmitidas diretamente para um disco rígido. Isso, dizem, garantiu a qualidade excepcional. Mas as entrevistas não me esclareceram como os ensaios foram feitos, se é que foram feitos ensaios gerais. Quase três mil pessoas, entre figurantes e atores, participaram das filmagens. Três mil visitantes, por assim dizer, do Museu Hermitage, em São Petersburgo. Entre eles, alguns monarcas, alguns emissários estrangeiros, inúmeros membros do alto oficialato russo e uma quantidade nunca suficiente de maravilhosas donzelas com os seus vestidos fazendo fru-fru. Que eu tenha contado, duas orquestras. A história um pouco obscura vai mostrando personagens célebres dos últimos séculos na Rússia, cercados de uma pletora de figuras pálidas que compõem o cenário. São 35 salões ao todo, como disse, eu acho, o sujeito responsável pela iluminação. Em apenas um, eu acho, as pessoas que estão passeando por lá sobreviveram à perestroika. Todo o resto, pelas roupas e pelas atitudes, poderia ter saído de um baile no castelo dos Karenine para fazer parte do elenco. Principalmente considerando como eles valsam. Não sei, naquela época ou era a valsa ou era esperar os onze meses de inverno passarem até que alguém desse algum baile, nesse intervalo os amantes podendo se comunicar só por cartas que, se tivessem de ser remetidas à província ao lado, provavelmente teriam de percorrer uns mil quilômetros. Só de ida. Acho que eles prolongavam a valsa ao ridículo para atender à necessidade que o povo tinha de conversar alguma coisa. E convenhamos que era merecido. Eu jamais aprenderia a valsa, por mais aristocrata que eu pudesse ter nascido, por mais cultivador de frivolidades que uma grande fortuna me permitisse ser. O filme, já ia me esquecendo, foi gravado numa única tomada, sem cortes. Por isso é que eu até agora estou pensando nos ensaios que devem ter sido realizados. Quase uma hora e meia de filme sem cortes. O máximo que acontece é a câmera de vez em quando estacionar num canto do museu por alguns segundos, fixando-se em algum quadro famoso, alguma estátua, ou então no diplomata francês altamente lunático que vai acompanhando o sujeito cuja visão é o próprio enquadramento da câmera. Esses dois sussurram algumas coisas incompreensíveis e, como espectros rondando a Europa, às vezes entram em alguns lugares que não pareciam ser fisicamente possíveis de serem entrados por qualquer objeto material.

Oliver Twist - 1948 - David Lean




At some point, Oliver is trying to run away from a bunch of people that are chasing him over a matter of a handkerchief he hadn't actually stolen -- mostly the common folk that just happened to be passing by and wouldn't have any reason not to engage in such a thrilling exercise of citizenship. Oliver, who was supposed only to watch and learn the new trade, was way behind the two boys who had taken the handkerchief from a gentleman's pocket. Going as fast as he could just to catch up with his two fellows, Oliver was successfully avoiding collision with many of the obstacles that were coming his way. A grown man, for instance, nearly grabbed him as he was running through. One would say, however, that he was unstoppable. He kept running, his enemies being left almost in a comfortable distance, when a huge wall, erected out of nowhere in the shape of a man, put a sudden end to what otherwise would have to be considered a perfect flee. May I add that by that time even Oliver's two fellows, who had had the opportunity to hide behind a dark place and join the raging crowd after it had passed on the hunt of Oliver, now were shouting words against him and throwing stuff at his direction. He didn't stop. Unfortunately, it wouldn't be much longer now until Oliver's cute and little face met what has got be the most striking punch that has ever been punched in the history of cinema. A true giant, that man was. Much to the his boast, Oliver was immediately knocked out. Somebody had to take him to the court, where he would face the consequences of his acts.

Colour me Kubrick - Brian Cook


John Malkovich está tão afetado neste filme, seus trejeitos são tão estrambólicos e irritantes, tudo nele é tão visivelmente postiço, que nem por um segundo é possível esquecer como ele é talentoso -- o fracasso do Ripley com ele, estou certo, foi culpa de outra pessoa. Aqui, dependendo da pessoa para quem ele está fingindo ser Stanley Kubrick, ele muda de voz e de personalidade da mesma forma inconstante com que eu mudo de sabor favorito de bala Halls, um a cada dia que eu passo em frente à barraquinha onde eu adquiro esse tipo de suprimento. Imagino se ele fez um laboratório, como se diz no jargão, com o verdadeiro Alan Conway. Alan Conway foi o sujeito que enganou uma porção de gente ao se passar por Stanley Kubrick --nesse processo talvez até deixando de pagar por umas vodkas que ele consumiu, mas, acima de tudo, se divertindo com a estultícia alheia. Normalmente ele oferecia sua ajuda, seus contatos com as celebridades, como um elemento de troca por pequenos ou grandes favores. E, como testemunham os anos que ele teve de sucesso com essa tramóia, pessoas querendo se aproveitar dos outros (no fundo, sendo passadas para trás), não faltam. O golpe era dado na Europa, principalmente na Inglaterra. Em Londres, com o propósito de ludibriar as pessoas que ele chamava para fazer algum passeio pela cidade, ele ficava sentado na porta de uma daquelas mansões sóbrias, desprovidas de grades, e combinava que as pessoas passassem por ali num determinado horário. Assim, elas nem precisavam entrar na casa para supor que ele era o dono, como, além disso, Conway também fazia a sua fama de homem pontual. Sempre funcionava, ele disse.

Wild in the Country - Philip Dunne


Último dos dvd's que eu ganhei no natal, primeiro filme com o Elvis Presley a que eu me lembro de ter assistido na minha vida consciente. Fiquei surpreso em descobrir que ele podia passar por ator. Mais surpreso, ainda, com o tipo de personagem que deram para ele. Num dado momento, é claro, ele liga o rádio do seu caminhãozinho e, como apenas uma música instrumental estivesse tocando, ele começa a cantar distraidamente, com direito a refrão e tudo -- essa cena durando alguns bons minutos. Numa outra hora, ele sentado numa escada ao pés da desconcertante Tuesday Weld, ele também começa a cantar uma música com uma letra elaborada demais para que se possa acreditar que alguém poderia improvisar aquilo. Tirando essas pequenas partes, que se não existissem, aliás, decepcionariam todos os seus fãs, ele fala e se comporta como uma pessoa normal -- assinando o nome no livro de hóspedes de um motel de beira de estrada; escrevendo peças de ficção levemente inspiradas nos seus familiares, nos seus amigos e inimigos; e até citando passagens da Bíblia perante a Comissão de Condicional... em aramaico.

Nova série do Ricky Gervais Show


Apenas divulgando. Karl Pilkington é a criatura de cabeça perfeitamente oval da direita. Stephen Merchant, a pilastra humana do centro -- que alguém aí, se o viu, não irá se esquecer do turista branquelo que perdeu a bermuda tomando um caldo na praia de Ipanema, há uns dois anos, segundo ele mesmo contou. Ricky Gervais, na esquerda, num dos poucos momentos em que ele não está tentando dar uma de nonchalant.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

O Processo Maurizius - Jakob Wassermann


Para o Olavo de Carvalho, Jakob Wassermann é o Dostoiévski do século XX. Ao que se pode acrescentar, pelo menos levando-se em consideração o que ele escreveu em O Processo Maurizius: o Dostoiévski do século XX não exatamente preocupado com as peripécias espirituais da Mãe Rússia, mas que, aqui e ali, se detém sobre as peripécias espirituais dos filhos de Israel. Pelo menos levando-se em consideração esse livro, repito, a coisa se dá de maneira incidental. Mas da sua obra constam outros livros que até pelo título se pode perceber que são dedicados a alguma espécie de procura pela identidade do seu povo. Livros que, de resto, eu ainda não li, como Os Judeus de Zirndorf e Meu caminho como judeu e alemão.

O "aqui e ali" que eu falei, no entanto, está longe de não satisfazer o interesse acentuado que eu tenho por tudo que se relaciona à história e à visão de mundo desse povo. O assunto é tratado com alguma profundidade nos praticamente monólogos de Warschauer-Waremme, um pouco perturbadores. Que, para melhorar a minha técnica de digitação, e como um brinde de início de ano, eu pacientemente transcreverei a seguir. O que me chamou a atenção nessa passagem, entre muitas outras coisas, foi a semelhança com o que eu me lembro mais ou menos vagamente de ter sido falado por aquele cara em The Believer -- filme a que assisti já faz muito tempo, mas sobre o qual andei conversando há algumas semanas. Pode até ser que nele se faça uma menção direta ao livro ou autor. Realmente eu não me lembraria agora. Transcrevo uma passagem que até vai revelar um pouquinho um detalhe da história. Não acho, porém, que estragará qualquer surpresa que alguém possa sentir a vontade de ter. Muito possivelmente, vai é incentivar a leitura do livro inteiro.

Estamos na Alemanha, no final da década de 20. A propósito, eu não gostaria de panfletar a respeito da guerra Israel-Palestina ou sobre o Terceiro Reich. Reconhecer Wassermann como o Dostoiésvski do século XX, afinal, significa reconhecer, acima de todo o resto, como ele sabia utilizar a psicologia para a caracterização dos seus personagens. É essa sua qualidade espetacular que eu gostaria de apresentar a quem eventualmente não a conhece. No mais, transcrevo apenas uma breve digressão que poderia ter sido omitida sem maiores prejuízos para o tema central do livro.

"Ah! sim, é verdade", exclamou Etzel, como se, durante todo aquele tempo, não tivesse mais pensado nisso. Sentou-se de lado próximo de Warschauer, para ouvir melhor e também, como estava escuro, para ver melhor. " O nome não tem grande importância", começou Warschauer, "não é mais do que uma chave, uma chave que abre, é verdade, portas bastante especiais. Você alguma vez conviveu com judeus, Mohl?" "Certamente! Vivemos no meio deles." "Você tem companheiros judeus?" "Sim." "Você se dava bem com eles?" "Muito bem." "Então, você não tem contra eles nenhuma hostilidade sistemática?" Etzel sacudiu a cabeça. Conhecia essa hostilidade, mas jamais a compartilhara. "Seus pais nunca advertiram você, proibindo-o de frenqüentá-los?" "N..ão." "Você está hesitando. Sim, não é verdade?" "Às vezes. Eu não ligava muito. Quando eram rapazes corretos, não dava importância." "Bem, é isso que eu queria saber." Conservou alguns instantes de silêncio, fazendo com a ponta da bengala buracos na areia. "Você pode imaginar que alguém procure enganar-se a si próprio sobre o seu nascimento? É uma coisa muito complexa. Não querer ser o que se é, renegar o tronco de onde se saiu, isso é o mesmo que trazer a própria pele como uma roupa emprestada. Meus pais eram judeus; pertenciam à segunda geração que gozou de direitos civis. Meu pai não tinha ainda compreendido que esse estado de aparente igualdade não era no fundo senão uma questão de tolerância. Pessoas como meu pai, aliás um excelente homem, não tinham, sob o ponto de vista religioso e social, ligações em parte alguma. Haviam perdido suas antigas crenças e recusavam-se, por boas ou más razões, a adotar novas, quero dizer: a fé cristã. Um judeu quer ser judeu. Que é que significa isso, um judeu? Ninguém pode oferecer a esse respeito explicação satisfatória. Meu pai se orgulhava da emancipação, creia você: uma invenção que tira ao oprimido qualquer pretexto de se queixar. A sociedade o repele, o Estado o repele; o gueto material se transforma num gueto moral e intelectual. Ele se enfatua e fala da sua emancipação. Você alguma vez já refletiu, meu pequeno Mohl, ou antes, você por acaso encontrou alguém que tenha tido motivo para refletir sobre certas... digamos, dissonâncias? Não? Você tinha mais que fazer, compreendo; mas talvez, de qualquer modo, você tenha ouvido falar do que se passa atualmente neste país. Não faço alusão ao desejo que têm de retomar esses miseráveis direitos civis que nos deram como se jogassem um osso a um cão. Por que não o fazem? Isso seria pelo menos agir honestamente, valeria mais que... permita-me um exemplo, que quebrar os monumentos funerários dos cemitérios israelitas. Você não acha? Que diz você, meu querido Mohl? Quebrar as campas! Hein? Profanar os cemitérios. Eis o que é novo na história, não? Dernier cri. Considero, depois disso, os envenenamentos das nascentes e o assassínios rituais como atos certamente criminosos e insensatos; mas, se os julgarmos de um ponto de vista mais elevado, eles se desculpavam pela paixão e pelo erro. Que acha você? Você fica calado, meu pequeno Mohl, e respeito seu silêncio. Essa profanação de túmulos é simbólica; infernal, única na história. Você já reparou alguma vez as últimas fagulhas que se extinguem sobre uma folha de papel queimado antes de ele ficar completamente negro? O mesmo acontece aqui. As última fagulhas da dignidade, de respeito próprio, de escrúpulo, de humanidade e de outras belas coisas com que nos enchem a cabeça, extinguem-se e tudo se torna negro. Mas estou me perdendo. É verdade que estabeleci, por princípio, que se afastar de um assunto é esgotá-lo. Não me deterei mais em recordações de família. Paciência, voltemos ao assunto. Contudo, ainda um axioma, meu querido Mohl, um axioma que vale para todos: em cada existência, chega um momento em que se pode escolher entre duas tendências diametralmente opostas, um momento em que Shakespeare poderia muito bem ter-se tornado um salteador genial como Robin Hood em vez de um autor dramático, ou Lenine, o chefe da polícia secreta do tzar, em vez de destruidor do regime. Eu teria podido, sob um impulso que, por insondáveis razões, não se produziu, ser chefe dos judeus, um Lutero do judaísmo. Enquanto que... hein! sim, é justamente disso que falo. Nossos atos são funções de uma dualidade profunda, inata em nós como a distinção instintiva que fazemos entre a direita e a esquerda. Não admita nunca, Mohl, que um homem em dadas circunstâncias não tenha podido agir de modo diverso do que fez: é falso. A questão é saber até onde seria preciso voltar para encontrar o momento em que seu livre-arbítrio permanecia intacto. Se você quiser, posso citar experiências pessoais... Não lhe aborreço? Sinceramente? Bem. O que na minha infância já me fazia sofrer horrivelmente era a covardia moral dos meus correligionários. Aceitavam suas existências de párias e consolavam-se com o sentimento místico e requintado de ser um povo eleito. Ou então, representavam o papel de senhores absolutos no mísero lugar onde haviam permitido que se ajuntassem ou, melhor, macaqueavam as maneiras dos todo-poderosos, seus senhores. Eu odiava a todos, quaisquer que eles fossem. Odiava sua língua, sua maneira de pensar, seu mercantilismo, sua melancolia atávica, sua presunção, sua mania de se pôr em ridículo. À noite, mordia meu travesseiro com raiva à recordação de um insulto, de uma humilhação, que a vítima tivesse sido eu, meu pai ou um outro judeu qualquer. Na escola, tremia de vergonha e todo o meu ser se revoltava quando pronunciavam a palavra judeu, mesmo de passagem, simplesmente para assinalar um fato. Você compreende isso? Na maneira de dizê-lo, já se percebiam todos os preconceitos, o ódio inveterado ao qual o decorrer dos séculos nada conseguiu tirar do seu fel e do seu rancor. Eu sabia o que pensar (bateu energicamente no chão com a ponta da bengala). Desde a idade de nove anos, sabia o que pensar; aos quinze, já tinha estudado a questão profundamente e era capaz de sustentar qualquer discussão. Mas não é com discussões que se mudam os fatos, mesmo os mais condenáveis, pelo menos no nosso mundo. E, entre todos os fatos, havia um que era absolutamente intolerável: o pensamento de que seria excluído de um setor qualquer da minha vida e da atividade humana. Então, eu, com a minha capacidade, a minha inteligência, o entusiasmo que sentia, não poderia jamais, quaisquer que fossem as circunstâncias, digamos, ocupar uma pasta ministerial? Ou me tornar o presidente de uma academia científica? E isso era, meu caro, possuir altos desígnios (teve um riso sardônico); eram pretensões loucas, minha ambição, não podendo nem mesmo ambicionar uma cadeira na Faculdade. Quaisquer que fossem as circunstâncias, jamais poderia conseguir a situação à qual um espírito mediano pode naturalmente aspirar, dado que não seja marcado pelo estigma de Caim. Esse pensamento me punha fora de mim. Podia-me dedicar a estudos, ensinar como entendesse, produzir trabalhos, ninguém me impediria; enfim, não me recusariam sua aprovação, até mesmo sua admiração, se os meus trabalhos o merecessem, mas... no fundo da alma, não teriam confiança em mim, rejeitar-me-iam, a mim e à minha obra, não me concederiam senão a contragosto as honras das quais são tão pródigos entre si. (Tirou o chapéu, mas logo se cobriu). Tudo isso eram raciocínios. O que é impossível contar é o essencial, a consciência de que me negavam tudo aquilo. E o que me negavam? Simplesmente, o direito de ter meu lugar ao lado dos outros, o direito de existir. Porque a existência não era possível para mim, pelo menos então, sem a posse total do mundo, o mundo em toda a sua plenitude, sem nada tirar ou limitar, e a vida intelectual e todo o império que ilumina. Assim cai por si mesmo a objeção que, sem dúvida, lhe veio ao espírito; que um só desses argumentos bastaria para me tornar solidário com meus correligionários e para encontrar nova força na necessidade de usar essas resistências. Já lhe disse, não gostava deles e, não gostando, sentia-me liberto de toda e qualquer solidariedade. Eles não podiam suprir tudo quanto me faltava. Deixando-os, eu não era um renegado; obedecia a uma necessidade interior. Dizer que não gostava deles, é dizer apenas a metade da verdade; a verdade integral é que o meu coração estava do lado dos outros. O fato não é raro; aquele que é repelido dá a sua alma aos que o rejeitam. É a característica do judeu: faz consistir sua terra prometida naquilo que lhe recusam; seu bem mais precioso, naquilo que não possui. É sempre a história do Paraíso perdido. Isso também é muito judaico: é a história do pecado original. Eu odiava de um lado e amava do outro. Amava a língua deles... a língua! a língua que era tão minha como meus olhos; amava a história deles, seus heróis, seus cantos, suas províncias, suas cidades. Amava-os com um amor mais profundo que o deles o compreendia-os melhor que eles próprios. Não é fanfarronada, rapaz, é a fatalidade. Aliás, eu o provei! Mas, voltemos atrás. Para começar, forjei uma lenda. Quando da morte da minha mãe, uma mulher boa e fiel às tradições judaicas, fiz dela uma cristã, filha de um militar aposentado. Convenci-me tanto disso que passou a ser para mim uma realidade, acompanhada, como num romance russo, por detalhes os mais convincentes. Mas isso fazia de mim apenas um mestiço, e que queria ser cristão puro-sangue. Imaginando um adultério com um rico proprietário da Silésia, afastava deliberadamente de meu nascimento meu pai israelita que, nesse ínterim, tinha por sua vez deixado este mundo sórdido. Nada de audacioso nisso. A natureza me favorecera. Eu era louro, do mais puro louro germânico (teve novamente o seu riso desagradável); a conformação do meu rosto que, inegavelmente, nada tem de oriental, lembrava desde a minha infância o tipo de camponeses que tínhamos em casa. E depois, a vontade modela os traços. No último ano do liceu, já me assinava Waremme. Por adoção; meu pai adotivo era um escritor católico que se dedicava à propaganda e redigia pequenos tratados religiosos; era louco por mim e tinha-me em conta de gênio.





Outro personagem cuidadosamente psicologicamente construído é o Barão Wolf von Andergast. Quando era ainda um jovem promotor, foi ele o responsável pela acusação no processo que culminou com a condenação de Leonardo Maurizius. Quase vinte anos depois, o réu ainda apodrecendo na cadeia por um crime que já não se tem mais certeza se cometeu, o Barão retoma o estudo dos autos do processo. É esse, aliás, o jeito de se fazer justiça quando a matéria envolvida é a lei e quando existe alguém querendo que ela seja aplicada por um tribunal.


O Processo Maurizius, como se pode imaginar, não é um livro de literatura jurídica ou de aventura forense. Me informo agora de que é apenas o primeiro numa trilogia que eu não faço idéia de como irá acabar. Ao que parece, vai se seguindo a vida de Etzel Andergast, filho do Barão, entusiasta ao seu próprio modo do seu próprio conceito de justiça. Um conceito, eu diria, bastante responsável, raro ao atribuir o encargo pessoal de se agir segundo a repulsa que a injustiça provoca, mas adolescente e ingênuo, por acreditar que tudo possa ou mereça ser mudado.

 
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