sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

O Processo Maurizius - Jakob Wassermann


Para o Olavo de Carvalho, Jakob Wassermann é o Dostoiévski do século XX. Ao que se pode acrescentar, pelo menos levando-se em consideração o que ele escreveu em O Processo Maurizius: o Dostoiévski do século XX não exatamente preocupado com as peripécias espirituais da Mãe Rússia, mas que, aqui e ali, se detém sobre as peripécias espirituais dos filhos de Israel. Pelo menos levando-se em consideração esse livro, repito, a coisa se dá de maneira incidental. Mas da sua obra constam outros livros que até pelo título se pode perceber que são dedicados a alguma espécie de procura pela identidade do seu povo. Livros que, de resto, eu ainda não li, como Os Judeus de Zirndorf e Meu caminho como judeu e alemão.

O "aqui e ali" que eu falei, no entanto, está longe de não satisfazer o interesse acentuado que eu tenho por tudo que se relaciona à história e à visão de mundo desse povo. O assunto é tratado com alguma profundidade nos praticamente monólogos de Warschauer-Waremme, um pouco perturbadores. Que, para melhorar a minha técnica de digitação, e como um brinde de início de ano, eu pacientemente transcreverei a seguir. O que me chamou a atenção nessa passagem, entre muitas outras coisas, foi a semelhança com o que eu me lembro mais ou menos vagamente de ter sido falado por aquele cara em The Believer -- filme a que assisti já faz muito tempo, mas sobre o qual andei conversando há algumas semanas. Pode até ser que nele se faça uma menção direta ao livro ou autor. Realmente eu não me lembraria agora. Transcrevo uma passagem que até vai revelar um pouquinho um detalhe da história. Não acho, porém, que estragará qualquer surpresa que alguém possa sentir a vontade de ter. Muito possivelmente, vai é incentivar a leitura do livro inteiro.

Estamos na Alemanha, no final da década de 20. A propósito, eu não gostaria de panfletar a respeito da guerra Israel-Palestina ou sobre o Terceiro Reich. Reconhecer Wassermann como o Dostoiésvski do século XX, afinal, significa reconhecer, acima de todo o resto, como ele sabia utilizar a psicologia para a caracterização dos seus personagens. É essa sua qualidade espetacular que eu gostaria de apresentar a quem eventualmente não a conhece. No mais, transcrevo apenas uma breve digressão que poderia ter sido omitida sem maiores prejuízos para o tema central do livro.

"Ah! sim, é verdade", exclamou Etzel, como se, durante todo aquele tempo, não tivesse mais pensado nisso. Sentou-se de lado próximo de Warschauer, para ouvir melhor e também, como estava escuro, para ver melhor. " O nome não tem grande importância", começou Warschauer, "não é mais do que uma chave, uma chave que abre, é verdade, portas bastante especiais. Você alguma vez conviveu com judeus, Mohl?" "Certamente! Vivemos no meio deles." "Você tem companheiros judeus?" "Sim." "Você se dava bem com eles?" "Muito bem." "Então, você não tem contra eles nenhuma hostilidade sistemática?" Etzel sacudiu a cabeça. Conhecia essa hostilidade, mas jamais a compartilhara. "Seus pais nunca advertiram você, proibindo-o de frenqüentá-los?" "N..ão." "Você está hesitando. Sim, não é verdade?" "Às vezes. Eu não ligava muito. Quando eram rapazes corretos, não dava importância." "Bem, é isso que eu queria saber." Conservou alguns instantes de silêncio, fazendo com a ponta da bengala buracos na areia. "Você pode imaginar que alguém procure enganar-se a si próprio sobre o seu nascimento? É uma coisa muito complexa. Não querer ser o que se é, renegar o tronco de onde se saiu, isso é o mesmo que trazer a própria pele como uma roupa emprestada. Meus pais eram judeus; pertenciam à segunda geração que gozou de direitos civis. Meu pai não tinha ainda compreendido que esse estado de aparente igualdade não era no fundo senão uma questão de tolerância. Pessoas como meu pai, aliás um excelente homem, não tinham, sob o ponto de vista religioso e social, ligações em parte alguma. Haviam perdido suas antigas crenças e recusavam-se, por boas ou más razões, a adotar novas, quero dizer: a fé cristã. Um judeu quer ser judeu. Que é que significa isso, um judeu? Ninguém pode oferecer a esse respeito explicação satisfatória. Meu pai se orgulhava da emancipação, creia você: uma invenção que tira ao oprimido qualquer pretexto de se queixar. A sociedade o repele, o Estado o repele; o gueto material se transforma num gueto moral e intelectual. Ele se enfatua e fala da sua emancipação. Você alguma vez já refletiu, meu pequeno Mohl, ou antes, você por acaso encontrou alguém que tenha tido motivo para refletir sobre certas... digamos, dissonâncias? Não? Você tinha mais que fazer, compreendo; mas talvez, de qualquer modo, você tenha ouvido falar do que se passa atualmente neste país. Não faço alusão ao desejo que têm de retomar esses miseráveis direitos civis que nos deram como se jogassem um osso a um cão. Por que não o fazem? Isso seria pelo menos agir honestamente, valeria mais que... permita-me um exemplo, que quebrar os monumentos funerários dos cemitérios israelitas. Você não acha? Que diz você, meu querido Mohl? Quebrar as campas! Hein? Profanar os cemitérios. Eis o que é novo na história, não? Dernier cri. Considero, depois disso, os envenenamentos das nascentes e o assassínios rituais como atos certamente criminosos e insensatos; mas, se os julgarmos de um ponto de vista mais elevado, eles se desculpavam pela paixão e pelo erro. Que acha você? Você fica calado, meu pequeno Mohl, e respeito seu silêncio. Essa profanação de túmulos é simbólica; infernal, única na história. Você já reparou alguma vez as últimas fagulhas que se extinguem sobre uma folha de papel queimado antes de ele ficar completamente negro? O mesmo acontece aqui. As última fagulhas da dignidade, de respeito próprio, de escrúpulo, de humanidade e de outras belas coisas com que nos enchem a cabeça, extinguem-se e tudo se torna negro. Mas estou me perdendo. É verdade que estabeleci, por princípio, que se afastar de um assunto é esgotá-lo. Não me deterei mais em recordações de família. Paciência, voltemos ao assunto. Contudo, ainda um axioma, meu querido Mohl, um axioma que vale para todos: em cada existência, chega um momento em que se pode escolher entre duas tendências diametralmente opostas, um momento em que Shakespeare poderia muito bem ter-se tornado um salteador genial como Robin Hood em vez de um autor dramático, ou Lenine, o chefe da polícia secreta do tzar, em vez de destruidor do regime. Eu teria podido, sob um impulso que, por insondáveis razões, não se produziu, ser chefe dos judeus, um Lutero do judaísmo. Enquanto que... hein! sim, é justamente disso que falo. Nossos atos são funções de uma dualidade profunda, inata em nós como a distinção instintiva que fazemos entre a direita e a esquerda. Não admita nunca, Mohl, que um homem em dadas circunstâncias não tenha podido agir de modo diverso do que fez: é falso. A questão é saber até onde seria preciso voltar para encontrar o momento em que seu livre-arbítrio permanecia intacto. Se você quiser, posso citar experiências pessoais... Não lhe aborreço? Sinceramente? Bem. O que na minha infância já me fazia sofrer horrivelmente era a covardia moral dos meus correligionários. Aceitavam suas existências de párias e consolavam-se com o sentimento místico e requintado de ser um povo eleito. Ou então, representavam o papel de senhores absolutos no mísero lugar onde haviam permitido que se ajuntassem ou, melhor, macaqueavam as maneiras dos todo-poderosos, seus senhores. Eu odiava a todos, quaisquer que eles fossem. Odiava sua língua, sua maneira de pensar, seu mercantilismo, sua melancolia atávica, sua presunção, sua mania de se pôr em ridículo. À noite, mordia meu travesseiro com raiva à recordação de um insulto, de uma humilhação, que a vítima tivesse sido eu, meu pai ou um outro judeu qualquer. Na escola, tremia de vergonha e todo o meu ser se revoltava quando pronunciavam a palavra judeu, mesmo de passagem, simplesmente para assinalar um fato. Você compreende isso? Na maneira de dizê-lo, já se percebiam todos os preconceitos, o ódio inveterado ao qual o decorrer dos séculos nada conseguiu tirar do seu fel e do seu rancor. Eu sabia o que pensar (bateu energicamente no chão com a ponta da bengala). Desde a idade de nove anos, sabia o que pensar; aos quinze, já tinha estudado a questão profundamente e era capaz de sustentar qualquer discussão. Mas não é com discussões que se mudam os fatos, mesmo os mais condenáveis, pelo menos no nosso mundo. E, entre todos os fatos, havia um que era absolutamente intolerável: o pensamento de que seria excluído de um setor qualquer da minha vida e da atividade humana. Então, eu, com a minha capacidade, a minha inteligência, o entusiasmo que sentia, não poderia jamais, quaisquer que fossem as circunstâncias, digamos, ocupar uma pasta ministerial? Ou me tornar o presidente de uma academia científica? E isso era, meu caro, possuir altos desígnios (teve um riso sardônico); eram pretensões loucas, minha ambição, não podendo nem mesmo ambicionar uma cadeira na Faculdade. Quaisquer que fossem as circunstâncias, jamais poderia conseguir a situação à qual um espírito mediano pode naturalmente aspirar, dado que não seja marcado pelo estigma de Caim. Esse pensamento me punha fora de mim. Podia-me dedicar a estudos, ensinar como entendesse, produzir trabalhos, ninguém me impediria; enfim, não me recusariam sua aprovação, até mesmo sua admiração, se os meus trabalhos o merecessem, mas... no fundo da alma, não teriam confiança em mim, rejeitar-me-iam, a mim e à minha obra, não me concederiam senão a contragosto as honras das quais são tão pródigos entre si. (Tirou o chapéu, mas logo se cobriu). Tudo isso eram raciocínios. O que é impossível contar é o essencial, a consciência de que me negavam tudo aquilo. E o que me negavam? Simplesmente, o direito de ter meu lugar ao lado dos outros, o direito de existir. Porque a existência não era possível para mim, pelo menos então, sem a posse total do mundo, o mundo em toda a sua plenitude, sem nada tirar ou limitar, e a vida intelectual e todo o império que ilumina. Assim cai por si mesmo a objeção que, sem dúvida, lhe veio ao espírito; que um só desses argumentos bastaria para me tornar solidário com meus correligionários e para encontrar nova força na necessidade de usar essas resistências. Já lhe disse, não gostava deles e, não gostando, sentia-me liberto de toda e qualquer solidariedade. Eles não podiam suprir tudo quanto me faltava. Deixando-os, eu não era um renegado; obedecia a uma necessidade interior. Dizer que não gostava deles, é dizer apenas a metade da verdade; a verdade integral é que o meu coração estava do lado dos outros. O fato não é raro; aquele que é repelido dá a sua alma aos que o rejeitam. É a característica do judeu: faz consistir sua terra prometida naquilo que lhe recusam; seu bem mais precioso, naquilo que não possui. É sempre a história do Paraíso perdido. Isso também é muito judaico: é a história do pecado original. Eu odiava de um lado e amava do outro. Amava a língua deles... a língua! a língua que era tão minha como meus olhos; amava a história deles, seus heróis, seus cantos, suas províncias, suas cidades. Amava-os com um amor mais profundo que o deles o compreendia-os melhor que eles próprios. Não é fanfarronada, rapaz, é a fatalidade. Aliás, eu o provei! Mas, voltemos atrás. Para começar, forjei uma lenda. Quando da morte da minha mãe, uma mulher boa e fiel às tradições judaicas, fiz dela uma cristã, filha de um militar aposentado. Convenci-me tanto disso que passou a ser para mim uma realidade, acompanhada, como num romance russo, por detalhes os mais convincentes. Mas isso fazia de mim apenas um mestiço, e que queria ser cristão puro-sangue. Imaginando um adultério com um rico proprietário da Silésia, afastava deliberadamente de meu nascimento meu pai israelita que, nesse ínterim, tinha por sua vez deixado este mundo sórdido. Nada de audacioso nisso. A natureza me favorecera. Eu era louro, do mais puro louro germânico (teve novamente o seu riso desagradável); a conformação do meu rosto que, inegavelmente, nada tem de oriental, lembrava desde a minha infância o tipo de camponeses que tínhamos em casa. E depois, a vontade modela os traços. No último ano do liceu, já me assinava Waremme. Por adoção; meu pai adotivo era um escritor católico que se dedicava à propaganda e redigia pequenos tratados religiosos; era louco por mim e tinha-me em conta de gênio.





Outro personagem cuidadosamente psicologicamente construído é o Barão Wolf von Andergast. Quando era ainda um jovem promotor, foi ele o responsável pela acusação no processo que culminou com a condenação de Leonardo Maurizius. Quase vinte anos depois, o réu ainda apodrecendo na cadeia por um crime que já não se tem mais certeza se cometeu, o Barão retoma o estudo dos autos do processo. É esse, aliás, o jeito de se fazer justiça quando a matéria envolvida é a lei e quando existe alguém querendo que ela seja aplicada por um tribunal.


O Processo Maurizius, como se pode imaginar, não é um livro de literatura jurídica ou de aventura forense. Me informo agora de que é apenas o primeiro numa trilogia que eu não faço idéia de como irá acabar. Ao que parece, vai se seguindo a vida de Etzel Andergast, filho do Barão, entusiasta ao seu próprio modo do seu próprio conceito de justiça. Um conceito, eu diria, bastante responsável, raro ao atribuir o encargo pessoal de se agir segundo a repulsa que a injustiça provoca, mas adolescente e ingênuo, por acreditar que tudo possa ou mereça ser mudado.

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