terça-feira, 15 de julho de 2008

Sobre um grande triunfo que poderia acontecer

Eu me lembro que em certa altura d’Os Maias, o sujeito que era o grande puxa-saco da história disse que Carlos Eduardo já fazia muito pelo processo de civilização de Portugal só de andar bem vestido pelas ruas de Lisboa, que qualquer coisa além disso já seria ignorar exageradamente a mediocridade e a sensaboria do povo lusitano. Nobre e rico, Carlos havia se decidido a montar um consultório médico apenas para contornar a sensação de rematada inutilidade que vez por outra assomava os espíritos singelos de alguns cavalheiros do século XIX; chegara a preparar uma biblioteca, e mesmo a conduzir alguns experimentos num laboratório equipado com tudo que a sua fortuna (na verdade a de seu avô) podia comprar.

Agora já não sei, na história, quanto tempo durou esse entusiasmo; pouquíssimas páginas, eu imagino. Carlos não era bobo nenhum pouco. Rapidamente lhe foi dado conhecimento de que sua posição não lhe exigia mesmo mais nada de construtivo, digamos assim. Isso até no mundo puramente artístico ou científico. Acho que ele chegou a iniciar um tratado sobre alguma coisa, lá enquanto estava sob o efeito de uma vontade de grandeza – um furor desses de inverno que, ao verão, é substituído pelo desejo de uma temporada em Paris. E trabalhando ou não trabalhando, engrandecendo a ciência ou não, o que o pobre Carlos Eduardo logo percebeu é que os ternos impecáveis e as peliças luxuosas, pelo menos com esse aparato ele poderia e iria civilizar a gente lisboeta. E pelo trabalho que essas coisas já davam, desde a encomenda nas melhores casas de Londres até a dura tarefa de vesti-los em temperatura um bocado mais elevada do que o recomendado pela etiqueta, talvez ele já estivesse fazendo mais do que a sua parte. Assim ele pensava, Lisboa que aproveitasse a chance.

Eu estou ao lado de Lisboa.

Mas penso, ainda, num grande triunfo que poderia me render nomeada. Seria, atenção, uma coletânea de tabelas das unidades monetárias ao longo do tempo e dos reinos. Que talvez viessem acompanhadas de um anexo de conversão de câmbio. A correspondência com o Real, não descarto, poderia até aparecer, já que não há brasileiro que não queira saber quanto custa cada coisa. O principal da minha empreitada seria apresentar as regras dentro de cada unidade, oferecendo respostas para perguntas como: “O que é um conto?”; “O que são nove mil-réis?”; “O que são vinte kopecks?”; “O que é uma libra?” e “O que é a importância de três moedas de cobre?”.

De modo que não mais alguém leria um conto russo tendo dúvidas sobre a proporção entre os copos de vodka que o infeliz bebeu e as peles de animais que ele deveria comprar com o dinheiro gasto lá com a sua ebriedade. E acabaria a freqüente inquietação de querer saber o valor de um dinheiro encontrado num embrulho em comparação com a esmola que o sujeito acabou dando a um mendigo. Não seria uma maravilha? Acho que Machado de Assis seria outro se lido com o auxílio dessa tabela. Ah, quantas luzes não poderia ela lançar sobre Sancho Pança, Shylock e Naziazeno.

Em alguns casos a necessidade da minha tabela parece ser não apenas acadêmica e frívola, mas séria e imediata. Quando se combinam frações de uma mesma moeda com a sua conversão em pecúnia estrangeira, por exemplo. Bom, ou eu sou muito burro – e aí, em todo caso, a minha tacanharia só poderia ser diminuída, e não aumentada, pela tabela –, ou Borges esperava que seus leitores fossem peritos do Banco Central quando escreveu este trecho. Ora, digam-me se isto não é obscuro (A Espera).

Da boléia o cocheiro lhe devolveu uma das moedas, um vintém oriental que estava em seu bolso desde aquela noite no hotel de Melo. O homem entregou-lhe quarenta centavos, e ele sentiu no mesmo instante: ‘Tenho a obrigação de agir de maneira que todos se esqueçam de mim. Cometi dois erros: dei uma moeda de outro país e deixei ver que o engano me perturbou’".

Tem gente que empaca duas horas para ficar pensando já na primeira frase de Ana Karenina. Eu não sei francamente se eu fiz interrupções meditabundas nesse livro, porque eu não sei se a expressão “três kopecks de troco” aparece alguma vez na história.

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