domingo, 31 de janeiro de 2010

Em Porto Alegre

Da minha visita a Porto Alegre, o que eu mais gostaria de registrar foi a minha ida a um recanto belamente escondido chamado Balaio Digital – um sebo na zona sul da cidade. Eu não o conhecia de nome e nem de qualquer referência que alguém pudesse ter me dado. Eu jamais tinha ouvido falar no lugar e, para ser bem franco, nenhum dos meus exercícios de me imaginar contemplando o Aleph e vendo todas as coisas de todos os tempos e lugares me levaram a idealizar esse sebo. O fragmento do cosmos que me escapou, esse sebo. Mas consultando no site da Estante Virtual os sebos de Porto Alegre eu selecionei uma entrada e decidi que um dos meus programas seria passar uma tarde ali. Não outros planejamentos. Entrei num taxi e fui.

O bairro é um pouco afastado de onde eu estava, de modo que foi preciso cortar algumas avenidas da cidade. As avenidas lá têm, segundo a minha observação geral, duas ou três pistas. São asfaltadas com qualidade, um canteiro no centro e amplas calçadas se estendendo praticamente pelo caminho inteiro, poucos locais de verdadeira retenção de veículos e muitas árvores trilhadas, nos lados. Você olha para o alto e um bom pedaço de céu se apresenta nublado, o que é bem diferente da região montanhosa de onde eu vim e das construções altas e grudadas e bloqueadoras da visão que existem onde eu moro. Atravessei a Cidade Baixa, me lembrando de como eu costumava ficar, menino, entusiasmado quando eu passava de carro numa pista em declive e a minha barriga gelava e eu me convencia de que realmente eu nunca iria parar de descer, subitamente começando a escavar um enorme buraco que me levaria à China, onde eu naturalmente encontraria pessoas de cabeça para baixo. Era isso de descidas e, já com a intenção de antecipar o meu astigmatismo, controlar os raios de luz com o leve cerrar dos meus olhos, desferindo golpes. Não segui toda a margem do rio Guaíba, não vi o gasômetro e nem a parte dos navios de dois andares que levam as pessoas para navegar por todas as ilhas do rio. Um pouco antes ou depois de me aproximar do rio e ver as suas águas barrentas, agora não me lembro, passamos em frente ao estádio do Grêmio e ao que o taxista colocou como sendo o chiqueiro do Internacional. Os dois juntos, sugeri eu e ele em seguida calculou de maneira definitiva e concordou, boiariam dentro do Maracanã se alguém resolvesse encher o Maracanã de água e depois lançar outros estádios para boiarem lá dentro. Realmente esses estádios são pequenos. No que diz respeito à viagem de ida, afinal, o momento ditoso foi mesmo quando eu descobri que os gaúchos - ou de resto esse taxista – conseguiram captar numa expressão em português toda a carga dramática que só quem conhece a fundo o senhor George Louis Costanza sabe que pode existir nas palavras “There’s no luck”. George, entre enfurecido e choramingão, pergunta ao Jerry where’s the luck. O próprio George, é claro, se responde e reclama que there’s no luck. Eu me lembrei disso. Quando um gaúcho está se aproximando de um sinal de trânsito e a luz vermelha acende antes que ele consiga se mover, entre enfurecido e choramingão a uma maneira peculiarmente costanziana, o gaúcho também reclama: “sorte falta!

A certa altura do trajeto eu comecei a ficar intrigado com a distância do sebo, até um pouco preocupado se o lugar existia mesmo. Olhando à minha volta, parecia que eu estava num bairro residencial, com alguns salões de beleza e com crianças jogando bola num gramadinho. Não um lugar que eu esperaria encontrar vinte e seis mil livros estocados, à venda por preços módicos. Fomos lentamente passando pelas casas e pelos pequenos prédios, olhando com cuidado e procurando o número certo. À medida que avançávamos, a coisa toda ia se definindo na minha cabeça como uma improbabilidade – a improbabilidade de dar certo que eu conheço. Quando finalmente chegamos ao número que eu havia anotado do site, me deparei com prédio marrom no qual eu buscava, eu buscava alguma placa indicativa, mas não encontrava. Só tinha uma porta e uma escada longa. Nenhuma pessoa entrando ou saindo. Ou isso aqui está muito estranho, ou isso aqui está muito esquisito, pensei. Com medo de não encontrar uma loja em funcionamento, pedi ao taxista que me esperasse um pouco, que eu ia ver se tinha alguma coisa subindo a escada, que eu já ia voltar com ele mesmo caso o adress fail ficasse caracterizado. Subi o primeiro lance da escadaria e vi, à minha direita, o espaço de uma porta ocupado por uma grade cinza. Do lado de dentro dava para ver umas estantes de livros. Antes que continuasse subindo, na direção de uma porta fechada, notei uma gambiarra de campanhinha e resolvi fazer um chamado. Muito alto, para chamar de fato a atenção de pessoas que não estavam de maneira alguma por perto, um estalo se fez ouvir no silêncio. Dali a instantes eu estava convidado a entrar e instruído, por uma mulher, a esperar que alguém viesse me atender. Era, sim, um sebo, e estava, sim, aberto, ela me respondeu amavelmente, aparentemente surpresa com a minha pergunta.

Um homem de uns trinta e poucos anos, talvez menos, então, apareceu para falar comigo. Eu reagi curiosamente. O longo percurso pela cidade; a incerteza que aos poucos foi tomando conta de mim sobre se o meu destino estaria lá na ponta correta; o certo assombro que eu senti quando eu vi aquele prédio sem placas e sem nada que fizesse alguém pensar ter um comércio instalado ali; tudo isso me deu um inexplicável senso de missão, como uma incumbência especial de localizar um tesouro, todo mundo ansiosamente a aguardar a minha chegada e na expectativa de me receber. Eu disse então ao homem: “Eu vim aqui para conhecer o sebo”. E vem a pergunta: eu por acaso me achei um imperador romano declarando que tinha ido, visto e vencido? Tá, de certa forma. Eu também me achei, posso dizer com toda a verdade, um completo babaca, porque logo se tornou claro para mim o desarranjo social que a minha postura estava transmitindo. Quando menos, uma inépcia para negociações. De onde eu tinha tirado aquela forma de falar, eu não sei, aquela circunstância tão radicalmente incompatível com uma trivial ida a um sebo (sobretudo eu, de forma alguma conhecido por ter qualquer conseqüência memorável quando me dirijo a sebos). Como eu devo ter sido percebido como um maníaco, de toda forma, progredia, eu acho, enquanto eu continuava a falar. Carlos, o proprietário que tinha vindo me atender, perguntou se eu tinha algum interesse específico para o qual eu pudesse dar alguma orientação. Eu repeti, meio gago, que só queria dar uma olhada. Algum autor no qual eu estivesse pensando? Não. Algum gênero? Não.

De forma a levar aquela conversa a algum lugar, eu suponho, ele começou a pedir desculpas pela bagunça e pelo fato de os livros estarem dispostos nas prateleiras pela ordem de entrada no sistema e não pela ordem alfabética de títulos ou autores. Deixei a minha mochila num canto depois que eu me lembrei, um pouco atrapalhado, que eu estava procurando literatura estrangeira. Carlos me mostrou o canto da sala onde ficavam os livros desse gênero e disse que eu poderia ficar à vontade para procurar. Rapidamente eu fiz todo o caminho de volta, passando pelos corredores estreitos, conversei com o taxista sobre eu ficar um tempo a mais lá em cima, subi mais uma vez as escadas, liguei o Ipod e então comecei a ver o que tinha de legal naquele canto da loja. Saí de lá com uma lista que eu achei excelente:


- O Hobbit, O Senhor dos Anéis e O Silmarillion - J. R. R. Tolkien. Quando eu falo que eu não sou um nerd, mas tecnicamente só um CDF, é por coisas como nunca ter lido nada do Tolkien. O que já mudou, de certa forma, porque eu escolhi O Hobbit para começar as minhas próximas leituras. Tudo dando certo, de qualquer maneira, este blog será mais ou menos reativado neste primeiro semestre, estes livros servindo de assunto para posts.

- Leviatã - Paul Auster. É um dos autores favoritos, que eu me lembre, da pessoa que pela primeira vez me falou sobre Kurt Vonnegut. Foi esse o porquê de eu ter comprado o livro.

- Os mais brilhantes contos de Dostoiewski. Pensando agora, acho que eu não conheço nenhum conto dele. Foi uma chance que eu não poderia perder.

- Declínio e Queda; Um Punhado de Pó; e Officers and Gentlemen - Evelyn Waugh. Desse eu posso falar com certeza que eu vi nada. Resolvi sanar a omissão logo com todos os exemplares que estavam disponíveis na loja.

- O Segredo do Padre Brown; A Morte dos Pendragons e Outros "Casos" do Padre Brown - Gilbert Keith Chesterton. Para não perder o hábito.

- Cabeça de Papel; Cabeça de Negro - Paulo Francis. Devaneios incompreensíveis de um homem louco, segundo me disseram. Conferir é preciso.


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