sábado, 15 de maio de 2010

Um punhado de pó - Evelyn Waugh


Eu acho que nem o fato deste livro ter sido escrito no século XX, sobre o século XX, serve para invalidar a afirmação de que os ingleses superam qualquer povo quando o assunto é pragmatismo -- inclusive quando se trata das suas mulheres e das relações extraconjugais que elas possam se divertir tendo. Comparando com o que eu conheço de livros dedicados ao assunto, Brenda Last foi a mulher que menos trabalho teve para descobrir que ela poderia, sem com isto fazer o mundo colapsar, quebrar o voto da fidelidade matrimonial. Emma Bovary, Anna Karenina, a Luísa não sei lá o quê do Primo Basílio, essas pobres não sabiam o que estavam fazendo. Elas se torturaram antes, durante e depois que o mal estava feito; tinham surtos de miséria. Quando não estavam ocupadas temendo o escândalo ou a possibilidade de serem separadas de seus filhos, estavam ocupadas tentando resistir, de início, às investidas dos cavalheiros que se apresentavam como candidatos a amantes. Brenda Last nem isso precisou fazer. Dos tipos no fundo mesquinhos e frívolos que os escritores criam para surgir na vida dessas mulheres (e digo no fundo porque eles sempre aparecem heróis no começo), John Beaver terá sido, dos que eu conheço, o mais deplorável e patético. Ele próprio se via assim. Ele próprio reconhecia que aproveitar o melhor da sociedade londrina era algo que ele só poderia fazer quando as migalhas lhe fossem atiradas de última hora, quando as mesas das festas precisassem ser preenchidas por alguém que não fizesse questão de ser razoavelmente antecipadamente notificado. Com a naturalidade de um serviçal ele ia atendendo aos convites e com a naturalidade de um serviçal ele acatou aos comandos do espírito emulativo de Brenda Last.

Também extremamente pragmático, por sua vez, Anthony Last recuperou, no final, alguns pontos que ele havia perdido como parte ofendida no triângulo amoroso. Eu literalmente vibrei, dando uns socos no ar, quando ele se levantou do restaurante e disse ao cunhado em quais termos ele iria reagir à tentativa de coerção que este último estava fazendo em nome da irmã traidora. Depois de se abandonar a John Beaver, que era um sujeito ridículo, Brenda ainda queria que Last pagasse uma pensão suficiente à sobrevivência fausta do futuro casal, porque Beaver, além de ridículo, era pobre e não trabalhava. O irmão dela havia se intrometido nessa briga e havia se encarregado de tornar real essa pretensão. Num almoço num clube ele e Last discutiram a situação. A Last foi proposto o pagamento de uma pensão exorbitante, sob a ameaça de que numa ação judicial a condenação seria conseguida: provas de um flagrante que o próprio Last tinha montado, contra ele mesmo, para favorecer Brenda, seriam usadas. Finalmente enraivecido com o caso, Last responde que não irá aceitar o acordo. Aproveita para dizer que as provas do flagrante serão devidamente desconsideradas no tribunal e que ele não vai dar nenhum tostão a quem quer que seja. Ali ele ganhou o meu respeito e me fez pensar em algum jogador de videogame que estivesse sofrendo uma pressão qualquer em algum jogo de disputa, e que num único momento conseguisse vencer o adversário, repentinamente, brutalmente, com um combo mirabolante e insano ou com um habilidoso headshot. Até então sendo provocado, ele largaria o controle do videogame como Anthony se levantou da mesa, desdenhando, e como Anthony saiu do restaurante, altivo, iria à cozinha e voltaria com um pacote de Pringles e um copo de Coca-Cola -- urrando alguns impropérios na cara do perdedor, relembrando cada detalhe de como foi sensacional a sua vitória e recusando-se a jogar uma nova partida para todo o sempre.

Na conta das lembranças prosaicas ficou, ainda, o teste de fidelidade do João Kléber. Num dado momento eu questionei o libertário que eu pensava existir dentro de mim, e eu senti que se eu estivesse sendo observado por uma plateia, muitos poderiam considerarar a minha conduta como sendo indiscreta. Imaginem, foi isso que eu fiz, que vocês tivessem atravessado o Atlântico numa pequena embarcação. Imaginem que vocês tivessem entrado nessa embarcação com um pouco mais do que um tênue senso de que vocês precisariam sair da Inglaterra a qualquer custo, e que uma expedição para a fronteira da Guiana Holandesa com o Brasil tivesse sido uma tola opção que, feita antes, agora vocês já não mais conseguissem evitar. Pois bem. Atravessado o Atlântico; feito o tresloucado desembarque no império dos mosquitos; contratada a suspeitíssima escolta dos índios macuxi para a condução até a terra dos índios vapixianas; caminhados, por fim, desorientadamente, quase os trezentos quilômetros de distância do trajeto; feito tudo isso, digamos que uma febre misteriosa lhe acometesse e que a única pesssoa branca que estava com você tivesse caído de uma cachoeira e desaparecido. Digamos que os índios macuxi tivessem abandonado a expedição com o medo de um rato de brinquedo comprado em Munique, e que, tendo sido deixado sozinho no meio da floresta amazônica, alguém aparecesse e lhe resgatasse. E agora vem o dilema: se essa pessoa, cuidando da sua enfermidade e te tratando com todos os recursos dela, tentasse impedir que você fizesse o caminho de volta pela floresta, e, ao contrário, te obrigasse a ficar lendo Charles Dickens todo dia, o que você faria? Foi esse o dilema. De um lado, toda a bibliografia de Charles Dickens à sua disposição. De outro lado, circunstâncias que não eram toda a bibliografia de Charles Dickens à sua disposição, entre elas a necessidade de sobreviver na floresta, passando o tempo sobrevivendo na floresta, sem ler toda a bibliografia de Charles Dickens. Até que ponto eu prezo a liberdade de só ler toda a bibliografia de Charles Dickens quando isso for a minha vontade? Que tipo de pessoa eu sou, foi o que eu me perguntei, inclonclusivamente.


A tradução deste livro foi feita pelo Diogo Mainardi, do que eu tomei conhecimento com felicidade. Um detalhe irrelevante que me fez gastar uns bons minutos pensando foi que ele decidiu não colocar um ponto depois dos pronomes de tratamento. Mr Last, Mrs Last. Mr Beaver. Mr Grant-Menzies. É assim que os nomes aparecem escritos. Se está certo ou não, se terá sido uma simples repetição do padrão encontrado no original, isso eu não sei. Os minutos que eu gastei pensando não se converteram em pesquisas gramaticais ou em consultas ao Google Books. Foram apenas minutos que eu gastei olhando para o teto em contemplação, num oblívio nirvânico, às vezes voltando algumas páginas e conferindo se o livro inteiro estava daquela maneira.

A minha cena predileta, que eu vou transcrever em parte mais abaixo, foi a do delírio febril do Tony Last. E isso exige que eu me explique, porque ter gostado dessa cena contrariou uma longa tradição que eu tenho respeitado ao longo da minha vida consciente. Cenas de delírio ou de sonho, desde Brás Cubas e desde uma vez em que um colega meu achou apropriado me contar um sonho que ele teve, no qual ele era Alex Kid, nunca são, pra mim, a melhor parte de uma leitura ou de uma conversa. Não chego nem a abrir uma exceção para os filmes do David Lynch porque nesse caso o critério falha na premissa, eu raramente tendo condições de saber e distinguir quais são as cena do sonho e quais são os poucos fragmentos reais e temporalmente lógicos. Mas o que me fez gostar da cena de delírio do Anthony Last foi como ela praticamente não descreveu colorações plúmbeas no céu, nem ruídos assustadores vindos do chão, nem essas coisas disformes e enfadonhas que costumam aparecer nessas horas. A cena do Anthony Last foi eminentemente narrativa, quase feita só de pessoas pronunciando palavras. Só para mostrar como o estilo é bom eu não preciso explicar todas as alusões aos eventos da história, eu acho, de modo que assim eu termino este post:

- Ordem - disse Polly Cockpurse. Proponho que Mr Last faça uso da palavra.
- Atenção, atenção.
- Senhoras e senhores - disse Tony. - Rogo-lhes que entendam que eu não posso sair dessa rede por estar doente. Dr Messinger passou instruções claríssimas a esse respeito.
- Winnie quer nadar.
- Não é permitido nadar no Brasil. Não é permitido nadar no Brasil.
A reunião assumiu o brado.
- Não é permitido nadar no Brasil.
- Mas você tomou dois cafés da manhã.
- Ordem - disse o prefeito. - Lord St Cloud, sugiro que o senhor leve a questão à votação.
- A questão é se o contrato para o alargamento do ângulo de Hetton Cross deve ser concedido a Mrs Beaver. De todos os orçamentos recebidos, o dela decididamente foi o mais caro, mas fui informado de que seu projeto inclui um muro de metal cromado na face sul da aldeia...
- ... e dois cafés da manhã - lembrou Winnie.
- ... e dois cafés da manhã para os homens encarregados do trabalho. Aqueles a favor da moção devem cacarejar como galinhas e aqueles que são contrários devem dizer au-au.
- Esse é um procedimento inteiramente impróprio - disse Reggie. - O que os empregados vão pensar?
- Precisamos fazer algo até que Brenda seja avisada.
- ... Eu? Eu estou bem.
- Então considero aprovada a moção.
- Estou muito contente que Mrs Beaver tenha conseguido o serviço - disse Brenda. - Estou apaixonada por John Beaver, estou apaixonada por John Beaver, estou apaixonada por John Beaver.
- É essa a decisão do comitê?
- Sim, ela está apaixonada por John Beaver.
- Então a moção foi aprovada por unanimidade.
- Não - disse Winnie. - Ele tomou dois cafés da manhã.
- ... por maioria absoluta.

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