sábado, 22 de novembro de 2008

1492 - Vida e tempos de Juan Cabezón de Castela - Homero Aridjis


Disclaimer: Leia novamente. É 1492. Mil quatrocentos e noventa e dois. Descoberta da América. Tomada de Granada pelos reis católicos. Expulsão dos judeus do território espanhol. Não Pearl Harbor. Não aquele joguinho do Phantom System.

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De tempos em tempos a sabedoria fútil adquirida em nove temporadas de Seinfeld é colocada em causa. E às vezes o caso é difícil.

A certa altura do livro, por exemplo, chega-se ao dilema de se decidir qual é a pior parte de ser cego. Um dos personagens principais, Pero Meñique, perdeu a visão num duelo ou quando foi feito prisioneiro por um inquisidor, eu acho. Aproveitando-se disso para opinar em todos os assuntos relacionados à cegueira, várias vezes ao longo da história ele dá o seu testemunho. Não podemos deixar de reconhecer que ele tem algum conhecimento sobre a matéria. De outro lado, Jerry dispõe de todo tempo do mundo para abstrair quaisquer preocupações e se dedicar a um único pensamento, por mais anódino que seja. De modo que o resultado dessas duas circunstâncias, no ponto que estou discutindo, é o do mais absoluto equilíbrio.

Jerry, todos sabemos, sustenta que a pior parte de ser cego é não ser capaz de dizer se a sua comida está infestada de bichos, insetos. Não se poderia jamais saborear uma refeição, prossegue ele, sendo necessário constantemente ficar sentindo os lábios e a língua. O argumento é forte e bastante singular, para não dizer incontestável.

Já Pero Meñique, que, lembremos, é cego, tem uma opinião mais trivial. Para ele, a pior parte de ser cego é cair duas vezes no mesmo buraco. No entanto, ficamos sem saber até que ponto essa opinião é influenciada pelo fato dele ser não apenas cego, mas mendigo de ofício, e não apenas profissional da mendicância, mas pedinte em Madrid - no século XV, ainda por cima. Não podemos afirmar que a quantidade de buracos nesse cenário tenha sido irrisória, nem de que forma a psicologia humana se comportaria no caso de tombo repetido num mesmo lugar. Só podemos afirmar que não importa qual tenha sido a quantidade de buracos, Pero Meñique é candidato a ter sido um dos seus mais assíduos frequentadores. E esse mero fato já é algo que não pode ser ignorado.

Como diria Neo, não estou aqui para dizer como esse dilema termina. Estou aqui apenas para dizer que ele começou.

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Transcrevo uma das minhas passagens favoritas no livro, uma das muitas engraçadas que aconteceram ao bom Juan Cabezón e a Pero Meñique, ao andarem pelos quatro cantos dos reinos espanhóis. Era uma espécie de feira. Haveria um auto-de-fé, o que naqueles dias significava um dia de festa:

"(...) Um chocarreiro, com o rosto e as mãos pintados de preto, apontou para um anão ancião, de grande cabeça e corpo minúsculo, com gibão pardo, calças pardas, sapatos de sete solas pardas e um espadão de ferro maior do que ele. Disse:
-- Dom Luis Montaña el Abulense, que regressou a Ávila antes de sair de viagem e depois de morto voltou para levar o corpo. É fama que ganhou a vida como bufão vestido de dama, com um chapéu de infante de metade de sua cabeça e uns sapatos quatro vezes seus pés. Dizem que aos dez anos caiu de mau jeito e se levantou aos trinta e seis do mesmo tamanho. Mas, muito apaixonado, casou-se com três camponesas, que o deixaram liso, as três trigêmeas Ana, Juana e Susana. Grande imitador de pessoas, é remédio para contra melancolias e mezinha para aflições, se o beberem bem espremido."

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