segunda-feira, 27 de outubro de 2008

No Municipal

Algo que encontrei no DVD antigo.

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Estive na reabertura da temporada do Theatro Municipal deste ano. Foi em meados de março, com a apresentação do oratório de Beethoven, Cristo no Monte das Oliveiras. Eu poderia parar por aqui. Continuo apenas para registrar uma impressão não exatamente elegante como todas as que eu guardo daquela noite, mas no fundo bastante recreativa. Na meia hora que antecedeu a apresentação eu rapidamente conheci o senhor sentado ao meu lado e conversei com ele. Tive, ainda, a chance de o ver conversando com outras pessoas e pude perceber, de um ponto de vista puramente estatístico, o quão extraordinário era esse senhor.


Não me lembro do nome dele; possivelmente sequer nos apresentamos. Sentou-se ao meu lado no Balcão Nobre. Era um senhor de aspecto mirrado, macilento. Sugeria, como de fato era, o tipo perfeito e acabado de um ex-funcionário de Banco, mas nem por isso era uma completa nulidade como pessoa. Tinha uma engraçada, um pouco acerba, impaciência com as pessoas.


A sua existência, segundo me narrou, seguira um curso muito tranqüilo, como se não houvesse outro jeito de começar e se desenvolver. Notei uma placidez de vontade, se é que essa expressão faz algum sentido. Acho que não faz. O que quer que eu tenha notado, de todo jeito, se manifestou com maior força no modo como ele me informou sobre uma série de circunstâncias da sua vida. Foi com muita naturalidade, e expondo os fatos sem ordem alguma, aleatoriamente, emendando a um assunto outros que nada tinham a ver, como o aniversário de sua neta à discussão sobre a hora certa de se bater palmas num concerto.


Eu juntei mais ou menos estes dados. Passara toda a vida trabalhando numa mesma agência do centro da cidade, onde hoje funciona uma loja de telefonia celular. Desempenhara seu ofício com alguma dedicação e quase nenhum talento. Vagarosas e inevitáveis promoções o haviam levado ao cargo de sub-gerente, função em que alguém do sindicato o convencera a se aposentar mediante um benéfico acordo. O piano que possuía fora comprado à época, com o dinheiro que recebeu por ocasião do ajuste. Ele me disse que aquilo era um grande sonho.


A conversa desceu a detalhes de sua criação com seu pai, viúvo boticário. Por causa dessa condição, praticamente não teve convivência familiar; seus gostos assim como suas maneiras foram sendo adquiridos ao acaso. Foi assim com a música, por exemplo. Um membro da Banda da Polícia lhe ensinou as primeiras lições dos instrumentos de sopro e um pouco sobre pratos. Aprendeu e tomou gosto. Experimentou, também, o canto; largou-o quando constatou que só era capaz de executar músicas populares e que o repertório clássico estava muito além de suas aptidões. Foi, então, aprender a ler partituras, sozinho; mais tarde, quando se mudou de uma cidade do interior de Minas Gerais para Rio de Janeiro, chegou a se matricular num Conservatório. Finalmente, pensou, poderia aprender a tocar o nobre piano. A escolha, naturalmente, era a mais concorrida, precisava se submeter, inclusive, a uma prova. Como se preparar e conseguir passar, se até ali ele mal tinha encostado num piano? Sua única chance era se esforçar para exibir tudo que sabia de teoria musical, e simular umas e outras passagens de dedo. Simulou até que bem, achava, pois acabou passando.


Uma vez matriculado, no entanto, o problema da falta de piano permaneceu um inconveniente. Foi levando com a barriga, com toda sorte de reprimendas do professor, um homem que havia se casado três vezes; até que, depois de algumas semanas, arranjou um teclado para praticar as lições: um teclado, entretanto, absolutamente defeituoso.


Aos poucos, foi desistindo. Na cabeça ele tocava muito bem todas as músicas, e era um excelente assobiador, só as mãos é que não tinham qualquer técnica. Talvez tivesse até se saído melhor se possuísse um piano; mas a vida se encarregou de afastá-lo do sonho. "Me deram um trabalho de escrever no banco; escrevia à mão mesmo. E tinha que ser rápido. Você faz idéia do que é registrar todas as saídas e entradas de dinheiro de um Banco? Em três vias? Minha mão ficava doendo e eu chegava em casa e colocava compressa de água quente. Ia tocar piano?"


Tinha seus setenta e poucos anos, perceptíveis na pele enrugada e cheia de pequenas e coloridas bolotas, na saliência de veias levemente esverdeadas nas mãos, nos dentes amarelados, na camisa de botão colocada para dentro da calça caqui. A calvície já lhe levara todos os fios de cabelo localizados acima da linha das orelhas; os que sobraram eram artificial e grotescamente tingidos de preto. De todo o corpo exalava odor característico da idade, em geral fraco, mas um tanto incômodo na modalidade específica de mau hálito – em alguns momentos, eu prendia a respiração para evitar o péssimo cheiro. Sorte que ele costumava falar quase sempre olhando para as direções, indiferente ao fato de eu estar, sem me mover, à sua esquerda.


Eu tinha lá comigo uma impressão do libretto, que encontrei no Google e imprimi. Começamos a conversa criticando-o, coisa que o próprio Beethoven havia feito. Nele, Jesus canta feito um personagem qualquer, o que se reconheceu não ficar bem; Nosso Senhor tinha saído muito humano e pouco Senhor. Além disso, a letra, composta por Franz Xaver Huber, acho que com assistência do próprio Beethoven, é de espantosa pobreza poética, quase cretina e certamente enfadonha – a ponto de terem desejado reescrevê-la totalmente. Beethoven, que lamentava o texto e concordava com as críticas, acabou por não mexer com reescrita – dizia que a música tinha sido feita para aquelas exatas palavras e que alterá-las seria pior. Parece, também, que eles estavam com um calendário apertado.


Eu disse a ele que eu tinha estudado música quando pequeno e que chegara a tocar piano decentemente. Disso e das delícias usuais de se saber música, tornamos a Beethoven. Que gravações da Nona conhecíamos? As sonatas, o concerto do Imperador, o Minha Amada Imortal. Chegamos a Wagner, que foi onde eu parei. Ele ainda foi ao balé, aos tempos em que para entrar no teatro só com terno e gravata; fez um vôo horizontal, razoavelmente informativo, sobre a programação especial em homenagem a Mozart, as apresentações gratuitas da orquestra da Petrobrás®...


Conversávamos fluentemente, ele com total desembaraço, eu mais ouvindo, quando alguém da orquestra soltou uma nota mais longa, que sobressaiu entre as demais. Ainda não era o concerto. Os músicos só estavam brincando com os instrumentos. Esse ruído não foi acompanhado por nenhuma classe de agitação ou burburinho que indicasse qualquer coisa, todavia bastou para que uma senhora que estava na fileira debaixo da gente pensasse que o concerto estava começando – e ela falou ao senhor, com jeito educado, mas tratando-o como se fosse uma criança, se ele podia "ficar quietinho".


"Ficar quietinho? Pra quê?", respondeu irônico, "Eu vou falar! Tô conversando aqui, ora" completou como constatando um teorema matemático "Preciso falar!".


Eu já ia rindo do velhinho, no meu canto. Lembrei-me na hora de uma cena em que o George fica babando o ovo da Elaine "You´re the master of confrontation". Pois ele em nada ficava devendo à mulher que chegou a invadir o trabalho de uma pessoa só para mandá-la parar de falar sobre seus sapatos comprados, oh, na Botticelli! Eu já tinha achado o sujeito um espécime interessante; sua reação ao pito que lhe passara a mulher confirmava que ele era, ainda, notavelmente despeitado. Admirei.


Não se intimidando, dessa vez mais séria e talvez até rude, a mulher então disse "Tá começando, tá começando!" Fez com o dedo na boca "Shzzz", e voltou-se para o palco, dando o assunto por encerrado. Bom, na hora não atinei com o execrável insulto que acabara de ser perpetrado contra a gente. Confesso que não me dei conta instantaneamente do ultraje. Ainda achando graça na cena, fui fazer alguma coisa com a mochila, disfarçando.


Não é o que faria o meu companheiro de palestra; sublevar-se-ia contra a rebarbativa mulher, já com uma impaciência que não se mostraria evidente num funcionário de banco aposentado. Além do quê, acho que em algum momento ele teve a chance de olhar bem no rosto da mulher e investigar certas intenções que a mim escaparam. Eu não tinha percebido nada de especial nela, mas ele certamente havia farejado algo sórdido. Pois ele reagiu qual um urso, um velho e experimentado urso, de funesto instinto.


Repoltreou-se na cadeira fazendo gestos negativos com a cabeça, gestos que em retrospectiva eu considero completamente emblemáticos. Encolheu o pescoço, os ombros, baixou a cabeça, tudo isso numa expressão revoltada. "Tá começando?" Imagino que aquela frase ofendia tudo que ele achava correto nesse mundo; era aviltante, errada; negava-a com todas de suas forças interiores, como se ela estivesse a lhe roer por dentro. O vigor contido extravasou, então, para a imagem e os contornos do seu corpo, que flamejava contorcido. Eu não sabia que ele tinha isso nele. "Tá começando! Shzzz!" Quanta insolência!


A mulher, nessa hora, já olhava para frente e não viu aquele homem a rosnar de ódio. Não fosse a estreiteza da fileira dos assentos, acho que ele teria avançado sobre ela. Mesmo com as dificuldades de movimento impostas pelo guarda-chuva que ele tinha sobre as pernas, ele deu umas cutucadas nela e bravejou: "Que começou o quê! Começou nada! Cadê o regente? Cadê o regente? O regente nem entrou ainda... Tá vendo ali? Cadê o regente?"


A advertência foi recebia pela mulher com atonia. Algumas pessoas chegaram a se virar para ver direito o que estava acontecendo, mas a escuridão que recobria os assentos não permitia que muita coisa fosse vista. Quanto a este ponto em particular, eu estava numa posição privilegiada porque eu via, num mesmo plano, a perplexidade da mulher e o ânimo do senhor. Era mesmo de se esperar que ela ficasse um pouco envergonhada. Mas eu tampouco sabia o que fazer. Fiquei quieto, me segurando para não rir escancaradamente. Foi mesmo muito divertido olhar para o palco, na direção em que ele apontava, e ver no lugar destacado um eloqüente vazio. "Cadê o regente?" Vi que ele me olhava e se ria, o que eu teria percebido, de todo jeito, com as pancadinhas que me dava; olhei e também ri. E então entre desdenhoso e gozador, disse finalmente para a mulher "Você sabe o regente?", e depois de uma breve pausa, aniquilou "o r-e-g-e-n-t-e?".


Nesse momento, a mulher se levantou e começou a bater palmas. Ela e todas as pessoas por perto; e finalmente, todas as pessoas do teatro fizeram o mesmo, com entusiasmo e emoção. Eram os membros do coro que entravam. Quero dizer que, para mim, a senhora se aproveitou um pouquinho da situação para ignorar o meu companheiro, que ainda repetia absorto "Não chegou ainda o regente! Eles estão batendo palma pra quem?". Irritado, contudo, por ver que suas palavras de zombaria não mais afetavam a mulher, ele se deteve. Com descaso esticou o pescoço e viu o pessoal do coro entrando. Eu permaneci imóvel, pensando que ele pudesse puxar a mulher pelo pescoço para avisar que o regente ainda não tinha aparecido. Vendo que ninguém já o olhava, aumentou o tom de voz, mas ficou dizendo para si: "Tsc, brasileiro não sabe nada mesmo! Bater palmas para o coro? Tá errado, tá errado! Tem que esperar o regente, ora! Brasileiro não sabe nada, antigamente não tinha disso...".


Meti-me com a minha mochila. Eu sei lá se o coro pode ou não receber uma salva de palmas? E dado que sim, não seriam as minhas, tão fraquinhas e apáticas, que fariam diferença. De toda forma, eu não queria me juntar aos outros, e o certo é que eu não faria nada à vista dele. Ambos ficamos sentados. "Tenho que ligar para a minha neta em Belo Horizonte, quinze anos!", disse ele.

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